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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/11/01 19:33:36

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

Seminário em Brasília

No seminário Patrimônio Cultural e Identidade Nacional, realizado em Brasília de 25 a 27/9/2001, um dos oradores foi o maestro paulistano Júlio Medaglia, que disse:

Bissilábico Brasil
Bissilábica como o próprio nome do país, a bola foi, por muitos anos, o instrumento não musical motivador de um dos mais lindos balés silenciosos da face da Terra, o futebol brasileiro. Jogar, aliás, na maioria das línguas ocidentais, quer dizer também tocar (um instrumento): spielen em alemão, play em inglês ou jouer em francês.

Mas, spielen, play ou jouer quer dizer também brincar nessas línguas. E se o futebol nasce no Brasil como brincadeira de gente humilde em praias e várzeas com bola de meia, ele não perde esse espírito também quando se joga "p'ra valer". Manipular com os pés a bola tentando ludibriar o outro, fingir que se passa p'ra lá mas joga p'ra cá, insinuar que vai chutar mas a segura, enganar com o olhar e com um toque de calcanhar desviar a bola desnorteando a todos, é ou não uma forma de brincadeira?

Mas, com o tempo, essa brincadeira vira outra forma de expressão da alma humana. Vira paixão. Nas relações humanas a paixão quase sempre se transforma em outros sentimentos - em amor, amizade, convivência pacífica e, às vezes, até em ódio. No futebol não. A relação passional do torcedor com o seu time não só permanece inalterada, como, ao contrário, quando ele perde, e ele sofre, ela cresce.

Essa relação deixa de ser, portanto, a daquele que participa de uma brincadeira e sim de uma relação afetiva. E não há maior demonstração de afetividade brejeira que a forma como os grandes jogadores da história eram chamados.

Se na Europa os ídolos da bola são tratados pelos sobrenomes - Beckenbauer, Rossi, Zidani (parecem nomes de empresas!) - nosso carinho por esses artistas os apelidava, como o próprio nome do país ou o seu instrumento de encantamento, a bola, bissilabicamente: Zico, Dida, Dodô, Edu, Mané, Didi, Nonô, Dadá, edu, Pepe, Tide, Zinho, Vavá, Fiu, Zezé ou, como o rei-dos-reis: Pelé.

Mas os tempos mudaram. O Brasil, o país pobre mais metido a besta do mundo, começou a achar que p'ra ser "globalizado", "civilizado" ou "primeiro-mundista", tem que importar cacoetes verbais de grandes nações.

No seu supermercado, por exemplo, não tem mais a seção "Reclamações" e sim "Ombudsman". O locutor esportivo, que ouvi ontem, não falava "melhor de três" e sim em play-off. No botequim da favela Paraizópolis aqui perto de casa - onde mais da metade do pessoal mal sabe redigir o próprio nome - não tem mais "serviço de entregas" e sim delivery.

Voltando ao nosso balé da bola, presenciamos agora as afetuosas expressões bissilábicas que identificavam gênios, artistas do palco verde, malabaristas que faziam o mundo morrer de inveja, também serem substituídas, depois que a cartolagem dele se apossou, industrializando-o e até gerando Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) mutretadas.

Hoje, na era dos "atletas", não tem mais Zico, Dadá ou Pelé e sim Ewerthon (com "w" e "th"), Whashington, Robert, Emerson, Wagner, Cris, Kleber, Müller, Waderley, Anderson, Alex, Roger etc.

Só que, apesar dos nomes "shakespearianos" que ganharam, esqueceram como se joga. Perderam e vão continuar perdendo para os países com o pior futebol do mundo em tristes "peladas" que a gente fica torcendo p'ra acabar logo.

Ah!... Com apenas duas sílabas, a gente era feliz e não sabia...

(*) O maestro Júlio Medaglia é natural de São Paulo/SP, formou-se na Meister-klasse de regência sinfônica da Escola Superior de Música da Universidade de Freiburg, na Alemanha - país onde viveu por mais de dez anos, regendo entre outras orquestras a Filarmonica de Berlim. Compôs mais de cem trilhas sonoras para teatro, cinema e televisão. Foi um dos fundadores do Tropicalismo, autor do arranjo original da música Tropicália de Caetano Veloso, que deu origem àquele movimento. Ensaísta, possui livros publicados como tradutor e autor, sendo membro da União Brasileira de Escritores, e, entre outras inúmeras atividades, apresenta há 14 anos programa diário na Rádio Cultura FM de São Paulo.