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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Novas leituras da África

Renovada e cultuada, literatura africana de língua portuguesa lota salas de aula e vira disciplina obrigatória

Rodrigo Fonseca (*)

O Brasil descobriu os africanos. Descobriu, gostou e adotou. Pelo menos sua produção literária, que andou lotando as salas de aula onde era apresentada e chegou a ser um dos assuntos mais recorrentes nas dissertações de mestrado e teses de doutorado dos anos 90. Com muita procura em um dos cursos universitários mais prestigiados do país, a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, as disciplinas de literatura africana de língua portuguesa tornaram-se obrigatórias este ano na Ilha do Fundão. Esse prestígio acadêmico não poderia deixar de render frutos comerciais, como comprova a procura nas livrarias pelos livros de Pepetela, Mia Couto, Ruy Duarte de Carvalho e José Eduardo Agualusa, cults africanos na Europa publicados no Brasil pela Nova Fronteira e Gryphus.

Abrindo espaço para um panorama da arte do romance, conto e poesia nas regiões lusófonas do continente, chegou recentemente às livrarias África & Brasil: letras em laços (editora Atlântica), uma coletânea de textos de escritores de Angola, Moçambique e Cabo Verde comentados por pesquisadores brasileiros. Organizado pelas professoras Maria Teresa Salgado e Maria do Carmo Sepúlveda e com apresentação de Carmen Lucia Tindó Secco, responsável pelo departamento de estudos africanos da UFRJ, o livro inclui diferentes gerações africanas. De veteranos como o moçambicano José Craveirinha (ganhador do Prêmio Camões em 1991) e o angolano Luandino Vieira a outros, que começaram a aparecer no Brasil recentemente, como o caboverdiano Arnaldo Santos e a poetisa de Angola Paula Tavares. Além de um panorama da história da literatura na África de língua portuguesa.

Poesias de Paula Tavares

''Os meninos à volta da fogueira
vão aprender coisas de sonho e de verdade
vão perceber como se ganha uma bandeira
e vão saber o que custou a liberdade''

''Meu corpo é um grande mapa muito antigo
percorrido de desertos, tatuado de acidentes
habitado por uma floresta inteira
um coração plantado
dentro de um jardim japonês
regado por veias finas
com um lugar vazio para a alma''

''Conterrânea de falantes de francês e inglês com características diferentes e crescida no cerne das guerras de independência, as literaturas dos países lusófonos da África apontam invariavelmente para uma história nacional. Conhecê-las implica um mergulho em sua formação. O problema, aqui no Brasil, é que suas obras ainda esbarram no desconhecimento. Quando se fala em África literária, se imaginam textos engajados e criadores negros. Puro reducionismo'', explica Tereza Salgado.

Esse preconceito apontado pela professora Tereza se confirmou na dificuldade encontrada por Carmen Tindó - que além de apresentar África & Brasil contribuiu para sua pesquisa - para oficializar a obrigatoriedade das disciplinas africanas nas Letras. ''Meus colegas de docência e eu levamos anos reivindicando uma posição da reitoria. Sempre esbarrávamos na desculpa: por que africanos e não latinos, europeus e americanos?. Acho que a justificativa é lógica e óbvia quando se pleiteia o estudo de uma cultura que se desenvolveu a partir do português para um curso de língua portuguesa'', ironiza.

Apesar das dificuldades, Tindó comemora as salas de aula lotadas. ''Nossa resposta a toda burocracia é o interesse dos alunos pelo desenvolvimento do português pelo mundo'', explica. A vitória para os estudantes do ensino público de Letras foi elogiada por um dos maiores estudiosos da literatura escrita em português, o ensaísta e professor Silviano Santiago. ''A consagração do estudo das literaturas africanas nos apresenta um caminho de auto-conhecimento, uma vez que podemos conhecer um pouco mais sobre os efeitos da colonização portuguesa e suas heranças culturais. Embora não seja muito a favor do rótulo obrigatório para nenhuma disciplina mas, no caso, acho que os alunos vão ter uma formação melhor'', acredita.

Fora do cenário acadêmico, um projeto coordenado pelo escritor carioca Paulo Lins deve contribuir para a divulgação da literatura africana via Internet. De volta ao Brasil após uma viagem à Ilha do Sal, em Cabo Verde, quando participou de um festival de cinema só com produções feitas na África, o autor de Cidade de Deus (Cia. das Letras) organiza um projeto com os atores Milton Gonçalves e Zezé Mota, o cineasta Zózimo Bubul e o núcleo paulista de cinema Dogma Feijoada, para montar um noticiário on-line com os lançamentos de livros e filmes africanos e com informações sobre os principais autores do continente.

''A África conhece a literatura brasileira melhor do que nós, que não sabemos nada da arte deles. Por lá, eles lêem de Guimarães Rosa a Paulo Leminski, e consomem muito de nossos costumes através da teledramaturgia. A idéia de uma homepage que fale da literatura africana é um primeiro esforço para eliminarmos a distância entre nós, já que não recebemos quase nada do que é produzido pelos africanos'', conta Lins.

Mas ninguém colhe mais frutos pelo reconhecimento acadêmico do que os próprios africanos. Pelo menos é o que defende uma das autoras analisadas no curso de Letras e nas páginas de África & Brasil: letras em laços, a poetisa angolana Ana Paula Tavares, que esteve no Brasil em outubro para um seminário sobre política e representações literárias na Associação Latino-Americana de Estudos Afro-Asiáticos (ALADAA), localizado no campus da Universidade Cândido Mendes do Centro.

Segundo a escritora, o estudo internacional da literatura africana é o resultado de um processo de afirmação das diferenças culturais em cada país. ''Depois de clamar por nosso direito à autonomia política, agora buscamos acentuar nossas diferenças. Nossa literatura não é homogênea. Cada país do continente tem seus problemas e quer tratá-los à sua maneira. Assim como todo autor tem suas próprias inquietações. A crença de que vivemos uma africanidade é contrariada em nossa prática na afirmação das nacionalidades'', diferencia.

(*) Rodrigo Fonseca assinou esta matéria na edição de 5 de dezembro de 2000 do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro.