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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/13/00 19:47:26

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Em busca de si mesmo

Claudio Cerri/Manrico Patta Neto (*)

A principal lição do mundo globalizado é que a palavra pátria não encerra um abrigo estável, mas relações mutáveis, tensas, entre economia, política e cultura. A referência que manda hoje é o mercado e nem todos cabem dentro dele. A língua continua a vocalizar o rosto de um Brasil mais amplo, que o país oficial não vê.

Ao contrário da efervescência cultural e política observada no início do século, o Brasil caminha para o desfecho do milênio com o semblante opaco de quem, aos 500 anos, parece ter perdido a capacidade de indagar sobre sua  identidade e, portanto, sobre seu futuro. Vários fatores podem explicar esse pragmatismo existencial, que se abstém de dúvida, de inquietação e de projeto. Mas talvez o mais crucial de todos seja a internacionalização acelerada dos mercados e das elites nacionais nas últimas décadas. Categorias antes tão arraigadas como as de Nação, Fronteiras e Identidade perderam sentido abruptamente, diante de fluxos financeiros e tecnológicos que ignoram territórios, causas e governos.

É sintomática a mudança de foco quando se analisa o assunto. "Nos anos 20, você se questionava sobre as lacunas da Nação - como vencer os desafios? Mas não questionava a relevância da tarefa nem a sua urgência", explica a historiadora Tania Regina de Luca, professora da Unesp - Universidade Estadual Paulista, de Assis, e autora de um livro imperdível sobre o período, A Revista do Brasil: um Diagnóstico Para a (N)ação.

A elite paulista enxergava o País então como um colosso carente de uma faxina higienizadora. Criada por Monteiro Lobato em 1914, quando publicou Urupês no jornal O Estado de S. Paulo, a figura do Jeca Tatu era a síntese dessa visão liberal que estigmatizou o homem do campo ao longo de décadas. Mestiço, amarrotado, inculto, doente e exaurido, o Brasil ressoava como um enorme Jeca Tatu. Hoje qual seria a metáfora-síntese de uma população 76% urbana, mas boa parte dela alijada da sociedade pelo desemprego e pela informalidade moderna? (leia Do Jeca Tatu ao Zé Brasil)

"Aquele foi um período de intensa releitura do país. Embora predominasse uma visão elitista, cheia de equívocos, havia uma urgência quase obsessiva de entendê-lo, uma quase compulsão para se debruçar sobre seus desafios, desvendar sua síntese e propor um projeto", conta a pesquisadora da Unesp.

A margem de manobra, no entanto, não era menos estreita que a atual. O mundo chafurdava em teorias racistas. O homem e o ambiente tropical eram vistos como categorias inferiores - as chances de o Brasil dar certo eram mínimas. "Se seguisse à risca o cientificismo dominante, a elite assinaria sua própria inviabilidade. Era preciso reelaborar alguma coisa para não sucumbir", relata a historiadora.

Hoje, ao contrário, o que sobressai não é apenas o esgarçamento de formulações mais abrangentes, mas a virtual desistência de produzi-las. Diante do rolo compressor da globalização, perguntar-se sobre o Brasil tornou-se exercício anacrônico e solitário. O país submergiu no mercado e dele só desponta em pedaços contábeis.

Ao completar 500 anos, portanto, o imaginário brasileiro despede-se de todas as utopias aglutinadoras (dentre elas, algumas descabidas) que emprestaram nervos e musculatura à sua identidade secular. Não é pouco o que se varre com a poeira do século. A utopia geográfica - do território redentor, recheado de riquezas inesgotáveis; a utopia da incompletude juvenil - "justificadora e protelatória", como bem observa Tania de Luca; a utopia do Brasil-potência - militarista e conservadora; e, finalmente, o mais recente dos desmentidos, a utopia da nação-emergente, catapultada ao Primeiro Mundo por um artifício cambial.

O envelhecimento e o desgaste dessas referências explicam em boa parte a dificuldade que o Brasil tem de se enxergar e, portanto, de formular uma trajetória de regeneração. Se não sei o que sou, como elaborar o que pretendo ser? "O passado tem que se reconhecer no presente para que se possa avançar", ensina a filósofa Olgária Matos, professora da USP - Universidade de São Paulo. A desvalorização da memória coletiva, segundo ela, representa uma espécie de interdição do passado - e do porvir.

As camadas do Brasil

Os nomes dos rios, das montanhas, dos povoados, de quase todos os pássaros e outros animais, os vários utensílios domésticos, muitos de nossos medos, as danças e cantos, boa parte da culinária, a alegria no uso do corpo, o andar descalço, o prazer do banho, a cestaria, a feminilidade, a ternura, o apego e a tolerância com as crianças. Tudo isso é herança indígena que se impregnou em nós, como gostava de lembrar o sociólogo Gilberto Freyre.

É fácil entender o porquê. Até meados do século 19, portanto 300 anos depois do descobrimento, o Brasil conviveu com um sistema bilíngüe. O português vocalizava o mundo oficial, a língua escrita, as transações formais. Mas logo abaixo dele - ou misturado a ele -, nas ruas, no sertão ou no cotidiano anônimo, falava-se o brasílico ou a geral, uma simplificação do tupi que permeava a comunicação entre brancos, índios, mestiços e até entre eles e os escravos. O enraizamento da geral foi tão forte que ela subsiste como língua de família até hoje, no final do século 20, em regiões isoladas do país.

Boca do Japurá, AM:
Na casa do ribeirinho Joaquim Martins ainda se fala a geral

Na boca do Rio Japurá, por exemplo, no Médio Solimões, em pleno coração aquático da Amazônia, é comum o uso doméstico do nheengatu (língua boa), denominação da língua geral no Norte brasileiro. Seu Joaquim Martins é um dos ribeirinhos que vivem ali, numa casa flutuante, passagem obrigatória para quem vai atravessar o Lago Mamirauá, um enorme santuário de vida selvagem encravado entre o Japurá e o Solimões, distante mais de 700 quilômetros por água de Manaus.

Quando recebe visitas, ele costuma desculpar-se pelo retraimento da esposa, dona Luzia, que participa pouco das conversas: "Ela fala a geral", justifica-se o marido, cercado de filhos e netos de feições tão mestiças quanto aquele pedaço de Brasil. O professor Eduardo de Almeida Navarro nunca esteve no Mamirauá, mas conhece a língua falada ali. Ele vem de uma família de plantadores de café de Fernandópolis, cidade vizinha de São José do Rio Preto, noroeste paulista. Traz sangue espanhol nas veias por parte de pai.

O avô materno, Belisário de Almeida, era um topógrafo inquieto e aventureiro que fundou cidades, desbravou caminhos e conviveu com índios no sertão do Mato Grosso, isso no tempo em que o sertão começava em Barra do Garças e pouca gente ia além. O neto passava férias no mato com o avô e se inebriava de tudo aquilo.

Depois cresceu, estudou Direito, formou-se em Geografia, viveu com índios guaranis e, finalmente, abraçou uma carreira inusitada: é o único professor universitário de tupi do Brasil. Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, onde leciona, Navarro faz uma analogia entre a sua trajetória e a diversidade que pulsa dentro da cultura e da língua brasileira: "A cultura de um povo, de uma nação e de cada indivíduo é um empilhamento de camadas, de tempos, de origens e de espaços.

Eu, por exemplo, o que sou? Um descendente de espanhol? Um caipira de Fernandópolis? Um sertanejo ou um urbanóide professor de Letras da Universidade de São Paulo? Sou tudo isso ao mesmo tempo", responde Navarro. "Justamente porque não é só circunstância, mas também memória e reflexão, a cultura nos liberta de sermos escravos do presente e nos dá esse poder indomável de refletir sobre ele. A cultura tem essa capacidade de se adiantar e mesmo de se contrapor às circunstâncias. Ainda que muitas vezes elas pareçam, como agora, intrans- poníveis", diz o professor da USP.

Do Jeca Tatu ao Zé Brasil

Influenciada pelas teorias racistas de Gobineu e Le Bon e por um darwinismo social que naturalizava preconceitos e justificava interesses, parte da elite brasileira do início do século descobriu uma solução engenhosa para os problemas nacionais: o branqueamento do povo. O progresso e a estabilidade política e financeira pressupunham uma transfusão genética de longo prazo. O Brasil, para dar certo, tinha que depurar o sangue negro, índio, mestiço, caboclo e caipira que circulava livremente em suas entranhas.

As elites resistiam a enxergar o bloco de contradições herdado da colonização e da escravatura. Para não contaminar o futuro, o jeito então era apagar o passado. Cem anos depois, o fetiche racial declinou, mas foi substituído pelo fetiche da moeda, que alguns cogitam "branquear", trocando-a pelo dólar norte-americano. O povo permanece como um ornato no baixo-relevo da paisagem. Ao contrário do que ocorre agora, porém, no início do século a adesão ao cânone dominante não foi unânime. Ou pelo menos não seduziu integralmente o conjunto das elites.

É justamente o relato dessa busca difícil de uma identidade própria, em meio a fortes condicionantes ideológicos, que faz a atualidade do livro A Revista do Brasil: um Diagnóstico Para a (N)ação. Produzido pela historiadora Tania Regina de Luca, da Unesp de Assis, ele extrai sua matéria-prima dos 113 exemplares da Revista do Brasil, editada por Monteiro Lobato, entre 1918 e 1925 - uma caixa de ressonância do debate político e cultural da época.

"Justiça seja feita, foi um período instigante, que explica em parte seu vigor intelectual, comparado à modorra moderna", diz Tania de Luca. Marcado por um bombardeio de artefatos históricos do calibre da Revolução Russa, da Primeira Guerra Mundial, do fascismo italiano, do darwinismo social, da criação do Partido Comunista Brasileiro, da Semana de Arte Moderna e da Coluna Prestes, o século emergiu de fato como uma trincheira interditada aos indiferentes.

Nesse campo minado, a trajetória do escritor Monteiro Lobato resume de certa forma os solavancos vividos por um nacionalismo relutante que buscava um entendimento original do país e de seus desafios.

Polêmico, contraditório, não raro equivocado, mas sempre autêntico, Lobato personificou a ambivalência desse pensamento. Com Urupês, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 1914, ele romperia com um certo nativismo ingênuo do Brasil pré-republicano. Lançava aí seu personagem mais famoso: o Jeca Tatu, protótipo do anti-herói anêmico e derrotado, mas ainda fruto de uma concepção elitista que ignorava os desequilíbrios nacionais, especialmente os do setor agrário. O estereótipo criou raízes no imaginário brasileiro. Consagrada no cinema por Mazzaropi e popularizado por milhões de exemplares do almanaque Biotônico Fontoura, distribuídos maciçamente até os anos 60, a figura raquítica do Jeca tornou-se sinônimo do homem rural. Cristalizou-se a criatura, não o seu criador.

Nacionalista sem ser xenófobo, Lobato era um personagem em busca de uma causa. Engajou-se sucessivamente na luta pela saúde pública; na campanha pela educação; na luta para abrasileirar o idioma; criou a primeira grande editora nacional; tornou-se o maior escritor de literatura infantil do país; bateu-se pela siderurgia brasileira; foi pioneiro na prospecção de petróleo e defensor de sua nacionalização. Preso, censurado e exilado, nunca fez concessões à conveniência.

Dono de um estilo direto e demolidor, funcionava como uma usina de convicções, mas não hesitava em se renovar - daí seu brilho. Em 1919, por exemplo, na quarta edição de Urupês, desculpava-se com o personagem por já estar convencido, àquela altura, de que o Jeca Tatu não era assim, mas fora feito assim. "Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga e inerte. Tens culpa disso? Claro que não... És tudo isso sem tirar uma vírgula, mas ainda és a melhor coisa desta terra", corrigia-se o romancista. Ao final da vida, doente, sem um pulmão, mas sempre inquieto, retornaria ao universo caipira, do qual partiu, em busca do derradeiro fiapo de esperança para redimir sua terra. Foi então que teve o último de seus famosos arroubos visionários.

Lançou uma antítese do Jeca Tatu - o Zé Brasil, um trabalhador sem terra em luta para mudar a estrutura fundiária brasileira. Editada em 1947 como um folheto discreto de 24 páginas, a historinha do Zé Brasil foi prontamente recolhida pela polícia política do governo Dutra, que já havia cassado o Partido Comunista e não se entendia com as liberdades democráticas. Em 1948, sairia uma nova edição à altura do Zé Brasil, agora com ilustrações feitas pelo consagrado pintor Cândido Portinari. O personagem porém não iria prosperar na obra do autor: em julho de 1948, Monteiro Lobato falecia em São Paulo, aos 66 anos de idade. A modernização agrícola aposentou seu Jeca Tatu. Mas a inquietante atualidade do Zé Brasil parece dar razão ao último suspiro desse brasileiro apaixonado.

(*) Texto de Cláudio Cerri com a colaboração de Manrico Patta Neto, extraído da revista Globo Rural nº 170, de dezembro de 1999.