Kanavillil Rajagopalan (*)
ABSTRACT: Translation, it is argued, is at once the process
through which colonial repression takes place and consolidates itself and also the only means at the disposal of the
colonised peoples to offer resistance of any significance to their oppressors. This highly important though relatively
recent perception of the importance of translation in colonial discourse could not have been possible if it had not been
for the advent of postmodernism which put language at the very epicentre of discussions of meaning, identity and
politics. KEYWORDS: translation, postmodernism,
colonialism, resistance.
RESUMO: Argumenta-se neste trabalho que a tradução é, ao mesmo
tempo, o processo pelo qual a repressão colonial ocorre e se consolida, como também, o único meio disponível para os
povos colonizados oferecerem qualquer resistência significativa aos seus opressores. Essa percepção de grande
importância, porém relativamente recente, não teria sido possível não fosse o advento do pós-modernismo que pôs a
linguagem no epicêntro das discussões sobre o significado, a identidade, e a política.
PALAVRAS CHAVE: tradução, pós-modernidade, colonialismo,
resistência. |
Em seu livro de grande sucesso e repercussão intitulado
Siting Translation, a autora indiana Tejaswini Niranjana (1992) mostra como a prática de tradução serve de instrumento
poderoso e extremamente eficaz na manutenção de poder nos contextos de colonização. Diz ela: "A tradução como prática amolda
e, ao mesmo tempo, adquire sua forma dentro das relações assimétricas de poder que operam sob colonialismo." (p. 2). Ou seja,
tanto a prática da tradução como a condição colonial se assentam sobre as desigualdades existentes entre as partes envolvidas.
Para entender melhor a problemática de tradução em situações de colonização é preciso que
nos conscientizemos em primeiro lugar de como o processo de colonização se consolida mediante o enquadramento progressivo dos
nativos dentro do novo regime opressivo e cerceador, implacavelmente dobrando sua resistência, paulatinamente apoderando-se de
suas vozes, finalmente silenciando-os, enfim tornando-os sujeitos totalmente submissos à nova ordem.
É importante salientar que o assujeitamento dos colonizados pelos colonizadores se dá tanto
no sentido político como também num sentido mais precisamente discursivo. Este, por ser mais sutil e menos visível, é, com
certeza, bem mais pernicioso e difícil de ser combatido. No sentido político, os colonizados são sistematicamente desprovidos
do seu direito - e por que não dizer, até mesmo do seu desejo - de autodeterminação, transformando-os em dóceis súditos. A
construção do sujeito de colonização se dá mediante aquilo que Pierre Bourdieu (1977) chama de "dominação simbólica". Com a
passagem do tempo, os colonizados passam a acreditar que sua condição de subalternidade faz parte da ordem das coisas e, com
isso, se deixam dominar pelos colonizadores, oferecendo-lhes quase nenhuma resistência.
No plano discursivo, os povos submetidos à colonização são interpelados como sujeitos da sua
própria fala, propiciando-se-lhes a ilusão de serem donos do próprio discurso. Isso ocorre na medida em que sua voz só é
representada na língua dos colonizadores mediante tradução, isto é, depois que a mesma tenha passado pelo crivo dos
interesses, explícitos ou - como acontece na maioria das vezes - ocultos, dos "falantes autênticos" desse idioma estrangeiro
que é eleito como "supralecto". Isto é, do ponto de vista discursivo, o processo de colonização é entendido pelos
colonizadores como um processo eminentemente tradutório através do qual aos sujeitos de uma "fala incompreensível" é concedida
uma certa inteligibilidade. A escamoteação de todo esse processo nefasto ocorre quando os colonizadores se dão ao luxo de
pensar que estão empenhados numa empreitada civilizadora.
Os colonizados enquanto sujeitos-falantes são transformados, para todos os efeitos, em
fantoches nas mãos dos colonizadores que "generosamente" emprestam-lhes voz e vez mas que no entanto agem na surdina como
habilidosos ventríloquos. Os colonizados, em outras palavras, começam a "existir" discursivamente só a partir de serem
traduzidos, ou devidamente "acionados" pelos colonizadores, aqueles que retêm o controle exclusivo sobre a língua hegemônica
do poder imperial. Como bem assinala Barnstone (1993: 141), "a tradução é, com freqüência, o processo pelo qual se criam os
originais."
Referindo-se especificamente ao caso da colonização da Índia pelos ingleses, Niranjana
lembra como a tradução fez parte do discurso colonialista do Orientalismo - a começar pelos esforços por parte da East India
Company de obter a maior quantidade possível de informações a respeito dos povos na mira dos olhos mercantis. A autora lembra
as palavras de William Jones, "descobridor" do Sânscrito para o Ocidente, de que a tradução de textos indianos para o inglês
serviria "para domesticar o Oriente, e, dessa forma, transformá-lo numa província de conhecimento europeu" (p.12). Para
Niranjana, Jones foi o principal responsável pela apresentação da "Índia textualizada" para os europeus.
A problemática de tradução traz à tona todos os aspectos relativos ao fenômeno da
representação - e, em especial, aqueles de natureza política. Afinal, traduzir é antes de mais nada interpretar, e toda
interpretação envolve representação.
Evidentemente, em contextos de colonização, os aspectos políticos da representação adquirem
um tom de urgência. Niranjana chega a aventar a hipótese de que as nossas concepções mais enraizadas de tradução são fruto de
uma ordem mundial que presenciou a conquista das terras alheias pelas nações européias com o único motivo de exploração dos
povos derrotados e pilhagem das suas riquezas.
A posição da autora vai ao encontro da tese defendida por Pennycook que, em seu livro
publicado apenas um ano depois do dela (cf. Pennycook 1994), afirma que o avanço da língua inglesa no cenário mundial
evidencia um certo complô cujas raízes podem ser detectadas na época do colonialismo europeu e acrescenta que "anglicismo" e
"orientalismo" são dois lados de uma mesma moeda. (p. 75).
Há também, na postura de Niranjana, ecos da tese extremamente polêmica, para não dizer
explosiva, defendida por Phillipson (1986), para quem o próprio pensamento lingüístico que as disciplinas consagradas como a
lingüística, a filosofia da linguagem etc. vêm legitimando ao longo dos últimos séculos, está atravessado por motivos ocultos,
dentre os quais interesses etnocêntricos.
De que forma os colonizados podem oferecer resistência ao assalto incessante às suas
liberdades de pensar e serem representados de acordo com seus próprios desejos remanescentes? Para Niranjana, qualquer
eventual resistência também terá de passar pela tradução. Aos colonizados cabe procurar oferecer traduções alternativas dos
seus textos.
As novas traduções colocariam em cheque as representações feitas pelos colonizadores, as
formas estereotipadas e preconceituosas utilizadas pelos mesmos para "reinventar" a cultura dos colonizados ao seu agrado,
enfim denunciar os interesses ideológicos que nortearam as traduções em circulação. Sem sombra de dúvida, estamos falando de
uma situação marcada por um jogo desigual de poderes, já que os novos tradutores estariam remando contra a maré formada pelo
consenso instituído pelos vitoriosos que retêm o direito de escrever a história oficial.
Entretanto, é preciso lembrar que a atividade de tradução sempre foi, sempre é, e sempre
será um gesto de reescrever, de recriar, de reinventar o original. Não é por serem ou por acharem ser herdeiros legítimos dos
textos apropriados pelos colonizadores que os colonizados podem se contentar com a ilusão de que as traduções alternativas a
serem propostas por eles serão mais fiéis aos originais. Não se trata, em outras palavras, de um confronto entre uma tradução
irrecuperavelmente errônea e outra fiel ao original. A luta dos colonizados, o seu desejo de independência e
auto-determinação, é antes uma luta sobre o direito de representar o seu próprio passado, o que não significa maior fidelidade
a tal passado, uma vez que o novo entendimento também necessariamente terá de passar pelo processo tradutório.
Os colonizados estarão, em outras palavras, simplesmente dando novos rumos à sua própria
história quando contestam as traduções propostas pelos colonizadores e oferecerem traduções alternativas. Nas palavras de
Niranjana: "O desejo pós-colonial de re-traduzir está relacionado ao desejo de reescrever a história. O ato de reescrever se
baseia num ato de ler, pois a tradução dentro de um contexto pós-colonial envolve aquilo que Benjamin chamaria 'citação' e não
'esquecimento absoluto'. Aqui não há uma simples ruptura com o passado, mas uma reescritura radical do mesmo."
A resistência do colonizado ao colonizador tem êxito na medida em que o primeiro põe em
cheque a representação hegemônica sobre si e seu passado e consegue, na medida do possível e de forma cada vez mais eficaz,
intervir no processo até então assimétrico e completamente desfavorável a ele, inscrevendo naquele processo uma
heterogeneidade até então completamente desconhecida e por fim subvertendo-o. Ao fazer isso, os colonizados reinventam sua
própria história, já que nada há de tradicional nas ditas tradições (Hobsbawm e Ranger, 1983; Loomba, 1998; 196). Ou seja, a
atividade tradutória - a mesma que selou o processo de colonização - acaba se tornando, nas mãos dos colonizados, o único meio
de resistência e, ao mesmo tempo, a arma mais poderosa para alcançar seus objetivos.
Não se pode esquecer que trabalhos como o de Tejaswini Niranjana são recentes e fazem parte
de uma guinada ainda em curso acerca da teoria e da prática da tradução. É interessante perguntar portanto por que o papel
central da tradução no discurso de colonialismo ficou desconhecido durante tanto tempo? Não é difícil perceber que as nossas
teorias sobre a tradução até há pouco tempo partiam de uma certa visão sobre a linguagem que a marginalizava em prol de um
dito "estado das coisas" que precisaria ser resgatado como verdadeiro objeto de estudo. A linguagem, segundo tal ótica, seria
um empecilho no caminho de investigações intelectuais.
A grande mudança que o espírito de pós-modernismo inaugura é a idéia de que, longe de ocupar
um lugar periférico, a linguagem está no centro dos acontecimentos. Com isso veio a percepção de que é na própria linguagem e
não através dela, e, muito menos, apesar dela, que os importantes rumos da nossa história são tomados. Como diz Giroux (1988:
20) com muita propriedade: "O traço mais importante do pós-modernismo é a ênfase na centralidade da linguagem e da
subjetividade enquanto novas frentes para se repensar as questões relativas ao significado, à identidade, e à política.
O discurso pós-moderno retrata a natureza da linguagem como um sistema de signos num jogo
infinito de diferenças e, ao fazer isso, mina a idéia positivista dominante da linguagem como um código genético estruturado
na permanência, ou simplesmente um meio lingüístico transparente para transmitir idéias e significados."
Endereço eletrônico do autor: <rajan@iel.unicamp.br>
AGRADECIMENTO
Sou grato ao CNPq pela concessão da Bolsa de Produtividade (Processo nº 306151/88-0).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARNSTONE, Willie. (1993). The poetics of translation: history, theory, practice. New Haven: Yale
University Press.
BOURDIEU, Pierre. (1977). Outline of a Theory of Practice. Tr. by Richard
Nice. Cambridge: Cambridge University Pres.
HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. (1983). The Invention of Tradition.
Cambridge: Cambridge University Press.
LOOMBA, Ania. (1998). Colonialism/Postcolonialism. London: Routledge.
NIRANJANA, Tejaswini. (1992). Siting translation. Berkeley: University of
California Press.
PENNYCOOK, Alastair. (1994). The cultural politics of English as an
international language. London: Longman.
PHILLIPSON, Robert (1986). Linguistic imperialism. Oxford: Oxford
University Press. |
(*) Transcrito dos Anais do VII Encontro Nacional de Tradução/I Encontro
Internacional de Tradução - Universidade de São Paulo, 7 a 11 de setembro de 1998. |