Clique aqui para voltar à página inicialESPECIAL: Natal e Ano Novo
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Ano-Bom

Também na sua obra Festas e Tradições Populares do Brasil (Ediouro, Rio de Janeiro/RJ, cerca de 1985), Melo Morais Filho narra os costumes brasileiros relacionados com a passagem de ano, em fins do século XIX e princípios do século XX:

Ano-Bom

Entre todos os povos, do mais civilizado ao mais selvagem, as festas do primeiro do ano celebravam-se, passando apenas pelas modificações próprias ao desenvolvimento de cada culto e à índole de novas raças.

Tão alto quanto possam remontar os monumentos históricos, as encontramos, não sendo excluídos, como participantes desses regozijos religiosos e profanos, o negro da África e o caboclo da América.

Dos romanos, que por sua vez já haviam recebido dos gregos a tradição, os primitivos cristãos perpetuaram o legado pagão das celebrações do Ano Novo colorindo-o dos reflexos místicos dos vidros pintados de suas catedrais.

Entre as civilizações mais apuradas e as mais bárbaras, como dissemos, essas festas encontram-se nas mitologias nacionais, tendo como objetivo as congratulações populares pela volta da primavera ou a glorificação da lavoura.

Os primeiros sintomas de assimilação nos tempos modernos registram-nos as calendas de janeiro, fulminadas por Santo Agostinho e São João Crisóstomo, que se revoltaram contra as crenças romanas adotadas pelos cristãos, vindo logo após a festa dos Loucos e a dos Inocentes ludibriar do anátema dos santos padres.

Durante as ruidosas festas da primavera, isto é, da abundância e da colheita, os presentes agrícolas trocavam-se, a família e depois as tribos reuniam-se, os sacrifícios, as danças, os festins, as cerimônias propiciatórias tinham lugar, provindo daí, para os povos modernos, os presentes de festas, as visitas, os folguedos, as abusões, as congratulações públicas do dia de Ano-Bom.

A Idade Média, que tudo via através de suas preocupações ascéticas, desviou-lhes as correntes astroláticas, incluindo-as no calendário do Natal, com outras pompas e outros ideais.

Desde ou daquele modo, o certo é que as festas de Ano-Bom não pertencem a este ou àquele povo, mas à humanidade inteira.

Em todos os países da Europa, esses festejos intercalam-se aos do Natal e de Reis, formando um todo a que os ingleses chamam de Christmas.

Na Inglaterra ou na Alemanha, na França ou na Itália, o nacionalismo pátrio transluz nessas manifestações alentando velhos costumes, cujas fórmulas jamais se apagaram da lembrança popular.

E não há festas mais belas em qualquer desses países; não há horas mais alegres naqueles lares; não há orgulho mais legitimamente sentido por aquelas turbas, do que percebendo palpitar debaixo das formas da arte as suas antigas legendas e os seus contos, constituindo a base das representações teatrais do Natal.

Juntai a isso os presentes, as surpresas, as visitas, as felicitações, o conchego da família, o beijo improfanado sob a rama verde dos tetos, e tereis, com uma centena de coisas mais, as despedidas do Ano Velho e as entradas do Ano Novo.

Esses costumes seculares, de que damos testemunho, ainda perduram em toda a Europa.

Mas o Brasil é um país adiantado; acha ridículas as tradições e desfaz-se delas; absolvendo os demais povos dessas futilidades que envergonham, trata de encobri-las, e mostra-se sério...

Noutro tempo não era assim.

No Rio de Janeiro, a folia toda começava de véspera. A cidade, mais animada exteriormente pelo concurso de famílias e de indivíduos ambulantes, revelava o júbilo público, que se ostentava sem reserva.

Em qualquer praça, em qualquer rua, quem olhasse para as janelas, notaria fisionomias estranhas, caras novas, que pela maneira de apresentar-se, pela compostura, tornavam-se distintas de muitas que lá estavam, apreciando o mesmo objeto, entretidas pelo mesmo assunto.

Presentes de Ano-Bom (ilustração do livro citado)

Nas intermináveis galerias de escadas, janelas de peitoril e postigos, viam-se moças toucadas de flores naturais ao lado de algumas que não as tinham, homens vestidos de brim branco conversando com amigos trajados como para as recepções íntimas, velhas folgazãs e gritadeiras falando para as vizinhas de defronte, crianças traquinas e arrenegadas trepando nas grades de ferro das sacadas, suspendendo dos espigões as maçanetas de chumbo das extremidades, que, às vezes, lhes escapando das mãos, machucavam-lhes os pés.

E o que queria isso dizer?

Eram as famílias que tinham chegado da roça para passar o Ano-Bom com os parentes, convidando-os para a véspera de S. João em seus sítios e fazendas.

Aquelas cujas relações não iam além da Corte, reuniam-se igualmente, completando o aspecto pitoresco dessa cena, mais ou menos populosa, segundo os tempos em que esses costumes eram de rigor.

Com antecedência, já os presentes de festas principiavam a chover, e as escravatura a fazer-se interessada na felicidade de seus senhores.

E as tradições consolidavam as bases da família, e o reinado das superstições iluminava-se da esperança.

O dia de Ano-Bom era a época em que os membros de uma mesma família congregavam-se. Vindo por vezes de grandes distâncias, passavam juntos, no meio do prazer e das felicitações, até depois de Reis.

Para ver despontar o Ano Novo, ninguém dormia antes da meia-noite, pois era da crença popular que quem se conservasse com os olhos abertos até depois daquela hora, veria romper a aurora do ano seguinte.

Então, concluídas as magníficas ceias, as cantorias ao Menino em seu presepe, no fim das pilhérias dos velhos matutos, de diálogos extravagantes, os inocentes namoros ferviam nas salas, ao diapasão do barulho dos pratos que se lavavam nas cozinhas, das rascadas das senhoras com as negras, do ressonar dos meninos estirados nos sofás e nas cadeiras da sala da frente, à espera do sinal do Ano Novo.

Quando o relógio batia meia-noite, uma onda marulhosa de alegria espraiava-se pela assembléia, ao passo que as mucamas, os molecotes, as crias em fraldas de camisa, penduravam-se às sacadinhas da escada que deitava para o quintal, pasmados de nada descobrir, mas com os olhares fitos nas trevas que amortalhavam o Ano Velho.

- Boas saídas e melhores entradas! - diziam os pais aos filhos, as irmãs aos irmãos, os parentes e amigos entre si, abraçando-se, beijando-se, saltando de contentamento.

Nas casas em que havia bailes, o mesmo costume coroava a tradição, aos sons da música, ao brilho das serpentinas faiscantes, aos risos que corriam límpidos de uns lábios de rosa.

Isso, porém, que prolongava a festa, mudava completamente no dia primeiro. Da manhã à tarde, as visitas faziam-se, desfilavam numerosos os portadores de presentes, sendo de preferência contemplados, nas freguesias, o vigário, os médicos e o fiscal.

As banda militares tocavam às portas e nos saguões das casas dos generais, dos ministros, da pessoas gradas, dando as boas festas; compensando-lhes a atenção alguma cédula avultada ou peças de dinheiro em ouro.

Enquanto nos armazéns de comestíveis o comércio encaixotava dúzias de garrafas de vinho, acondicionava queijos do reino, presuntos, caixas de figos e ameixas, diversos gêneros destinados aos fregueses do ano; enquanto do convento da Ajuda, riquíssimas bandejas de prata, com a firma do indivíduo presenteado, armadas de doces, saíam umas após outras; era curioso de ver-se o que passava nas ruas, entretendo os abelhudos que comentavam dos sobrados.

Por toda a parte encontravam-se negros do ganho, de camisa de algodão por fora da calça arregaçada, conduzindo em cestos um leitão de barriga para cima, amarrado de pés e mãos, com o focinho apertado com um barbante grosso, guinchando, acercado de galinhas, patos e marrecos, com a cabeça pendente das beiradas do cesto e enfeitados nas asas com lacinhos de fita. Para contrapeso, o ganhador não deixava de levar um galo ou um peru na mão livre, também enfeitado de fitas estreitas, geralmente verdes e azuis.

Ao presente era de praxe acompanhar um cartão de visita ou uma carta, concebida mais ou menos nestes termos:

"...Boas saídas e melhores entradas lhe desejo. Incluso, encontrará vosmecê um leitãozinho, umas galinhas e um peru, para mais um prato do seu jantar..."

Aqui e além apareciam carregadores com caixotes de vinho ou com caixas de açúcar, criados de libré precedendo escravos enviados com dádivas principescas, tais como colchas da Índia, aparelhos da China, baixelas de prata, cavalos de montaria, fazendo contraste com a crioula ou mulata de casa menos rica, que seguia com um pão-de-ló, um bolo inglês, um pastelão numa salva modesta, coberta com uma gaze cor-de-rosa, com um tope de flores artificiais no centro, atravessado por um cartão ou um escrito.

Negros de cadeira (ilustração do livro citado)

Na Bahia, além de todas essas ofertas, estava nos hábitos darem-se escravos no dia de Ano-Bom. Assim, com um molequinho, uma moleca, um casal de negros novos, obsequiava-se os meninos, as moças ou os chefes de família.

Naquela província, onde as cadeirinhas estiveram constantemente em uso como meio de transporte, não causava espanto entrarem por uma casa dois negros de casaca de portinholas com vivos amarelos ou vermelhos, de chapéu de oleado com galão, calça curta e um pau ao ombro, acompanhando o portador de uma carta na qual se lia: "...Como uma lembrança de Ano-Bom, ofereço-lhe essa parelha de negros de cadeira, pedindo desculpa de não ser coisa suficiente..."

A isso não se limitavam os presentes. Pessoas havia que ofertavam casas e palácios. O paço de S. Cristóvão foi um presente de Ano-Bom, feito pelo negociante Elias Antônio Lopes a D. João VI, que o vendeu ao Estado, quando se retirou para Portugal.

Considerava-se uma grande falta, um crime, a ausência dos parentes mais chegados no jantar da família. Ninguém relevava essa falta, pois acreditava o povo que o que se fazia no primeiro do ano, se faria o ano inteiro.

Daí se depreende que cada um queria estar nesse dia com os seus, que todos vestiam roupa nova, que se brincava, tocava, cantava, a fim de que o conceito popular se realizasse em sua plenitude pressagiosa.

Os escravos, que nunca foram estranhos às alegrias ou desgraças do nosso lar, ganhavam festas, tinham folga, divertiam-se também.

Por ocasião dos banquetes fidalgos ou dos jantares menos opulentos, ao calor dos brindes, ao alarido da canção:

Como canta o papagaio,
Como canta o periquito...

os convivas entusiasmados proferiam longos discursos, os rapazes recitavam colcheias (1), as moças tímidas e vergonhosas abaixavam os olhos às palavras "amor", "meu bem", refervendo a animação nas saúdes em honra aos mais velhos, à família reunida.

As visitas oficiais e as de amizade faziam-se imprescindíveis. Havia cortejo no paço, os presepes pernoitavam iluminados, e - Boas Entradas! - Boas Festas! - eram moeda corrente de civilidade entre a população.

Depois de certo período, quando o Brasil fez timbre em imitar o estrangeiro no que ele tem de pior, entendeu que para parecer-lhe bem, cumpria desquitar-se das usanças tradicionais, quando eles as mantêm intactas.

Não compreendendo este país que ninguém pode ter sorrisos nas terras para onde vai em busca de fortuna, supôs que a coisa assim se passava lá por fora, e anda preocupado com um futuro que não lhe pertence.

Das nossas festas ninguém mais se lembra; os laços de família quase não existem; do dia de Ano-Bom, de grandioso e expansivo que era, nem nos restam vestígios!

E em troca de todo esse passado nos impinge a Europa cromos e folhinhas!

NOTA (de Luís da Câmara Cascudo):

(1) A colcheia desapareceu do uso poético, na forma clássica. Era um mote em dois versos para ser glosado em décimas. Obrigatoriamente a colcheia figurava na décima como o quarto e o último dos versos. Na poesia sertaneja denomina-se colcheia a uma sextilha, ABCBDB. Vaqueiros e Cantadores, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1939.


Pot-pourri de Ano Novo