Clique aqui para voltar à página inicialESPECIAL: Natal e Ano Novo
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Reisados e cheganças fecham a festa natalina

Ainda na sua obra Festas e Tradições Populares do Brasil (Ediouro, Rio de Janeiro/RJ, cerca de 1985), Melo Morais Filho conta mais sobre os usos e costumes brasileiros relacionados com o Dia de Reis, em fins do século XIX e princípios do século XX:

Reisados e cheganças

Na generalidade das províncias do Norte, a véspera de Reis é um dos maiores dias do povo, que recorda com as suas danças, os seus cantos e uma variedade imensa de autos as tradições poéticas dos tempos coloniais.

As cheganças e os reisados no Norte preenchem em muitas localidades as indicações da noite.

Completamente distintos, independentes uns dos outros, esses divertimentos públicos revelam naquela gente uma característica nacional, um sentir à parte, um traço acentuado de diferenciação entre o Norte e o Sul.

Perguntai por aí alguma coisa a respeito das festas do Natal, e obtereis a seguinte resposta: - "Quem sabe disso são os nortistas".

E que quer isto dizer? Que por perto de quatro séculos o trabalho das raças nesta metade do Brasil apenas serviu de proveito aos senhores e ao estrangeiro, que nos vão reconquistando dia a dia, sem barulho, sem matinada.

E tanto estamos na verdade, que a escravidão no Sul foi sempre infinitamente mais bárbara, jamais podendo ser comparado o engenho à fazenda - o Cáucaso e o Inferno dos pobres cativos.

E a nossa poesia popular, derivando do português e do negro, este último elemento aniquilava-se no Sul nas torturas da senzala, no martírio forçado da escravidão.

Daí a tristeza que se nota no mestiço destas bandas do Brasil, o desânimo, o acabrunhamento, em contraposição à alegria franca da mulatada de lá, dos crioulos, reconhecidamente inteligentes, patriotas, inclinados à música, à poesia, às belas-artes.

Sendo o nosso povo assim constituído, claramente se vê que os costumes tradicionais daquelas terras são a resultante da liberdade que ali gozavam os escravos, embora restrita, relativa.

Dos reisados e cheganças, a classe popular a que nos referimos e a gente pobre eram e são os donos.

Ninguém há que não se divirta nas províncias, armando presepes, assistindo a serenatas, passando nos engenhos ou nos arrabaldes as festas do Natal.

Na véspera de Reis é que a folia recrudesce, e desde o meio-dia começam as cantorias nas ruas e praças, a freqüência das multidões aos palanques à porta das igrejas e nos pátios das matrizes.

Eis senão quando, aos pandeiros que arrufam e aos chocalhos que tinem, ouve-se um alarido.

É o cordão de marinheiros, que, puxando um navio, conduzindo uma âncora, um mastro etc., anuncia nas ruas a chegança dos Marujos.

Caboclos, cabras, crioulos e pardavascos, lindos, ágeis, vestidos à maruja, fardados, fantasiados com propriedade, incumbem-se de seus papéis, indo desempenhar a chegança numa praça.

Imitando o balanço de bordo, seguidos das figuras principais, lá passam cantando uma canção, que prenuncia o combate:

Ó nau-fragata, ó nau-fragata,
Marcha para a guerra!...
     Ê lô...
Se não for por mar
Há de ser por terra!...
     Ê lô...

E o Patrão, o Piloto, o Mar-de-Guerra, o Calafatinho, o Surjão, o Padre-capelão, o Gajeiro, o Guarda-marinha, o Capitão, o Rei Mouro, o Embaixador etc... ostentam-se garbosos com as suas vestimentas agaloadas, seus distintivos, seu trajar próprio.

As moças chegam às janelas para vê-los, a meninada chusma a cada canto, o préstito popular avulta sempre, cresce por todo o caminho.

O Piloto, com a espada desembainhada, exibe-se em atitude belicosa, cercado de tocadores de pandeiro, dos outros personagens, da maruja entusiasmada:

Ó nau-fragata, ó nau-fragata,
Marcha para a guerra!...
     Ê lô...
Se não for por mar
Há de ser por terra!...
     Ê lô...

E vão, e vão cantando e tocando, simulando as manobras nos navios, até chegarem a seu destino - aos palanques ou casas para as quais receberam convite - representar os Marujos ou os Mouros, conforme o terno.

Esses espetáculos principiam e terminam a qualquer hora e repetem-se até o carnaval.

As cheganças podem ser de mulheres. Então as belas tabaroas, vestidas de branco, com chapéus de palha enlaçados de fitas e flores, comparecem nos tablados iluminados, armados, conquistando afetos, palmas, ovações...

E isso bem pode compreender quem uma vez teve a fortuna de admirar aqueles semblantes tisnados, aquelas formas arredondadas, aquelas vozes cadentes como o sussurrar da aragem nas lagoas e nas matas.

E as tabaroas requebram-se nas danças, puxam a feira, descantam à porfia os versos de Reis, inspirados pelos sertões aos poetas nativos:

Avistei...
Avistei terras de França,
Avistei!
Em Portugal avistei,
Avistar...

É esta a derradeira cantilena dos marujos encaminhando-se para os tablados que distinguem ao longe, resplandecentes de tigelinhas acesas, de arandelas e de flores selvagens.

Simultaneamente, nas salas dos presepes, nas varandas dos engenhos, o Reisado do Zé do Vale é esperado com ânsia, as famílias para isso preparam abundantes ceias, e a escravatura, ao mesmo tempo que festeja o Natal, batucando e cantando ao fogo das fogueiras, não deixa de aguardar impaciente a Maria Teresa e o Boi, que dançam a encantar.

O Reisado do Zé do Vale é um dos mais graciosos da véspera de Reis. Variadíssimo em personagens, dialogado, cantado, entremeado de danças populares, este auto dos nossos sertanejos entretém a noite, não sendo menos original que o da Cacheada.

Nos reisados, os violões, rabecas, flautas, pandeiros, cavaquinhos, violas etc. perfazem a orquestra em afinação alta, em tons transportados ou lisos.

Os lugares das representações já estão previstos, os donos da casa fazem as honras aos seus convidados, o presepe fica aceso, os meninos e as crias despertos.

A um instante a porta da rua fecha-se, ficando as janelas desertas, mas escancaradas. É isto logo que um clarão esfolha nas trevas rosas de fogo, e umas harmonias e vozes ritmadas entornam-se débeis nos ares longínquos. E os rumores avolumam-se e o bando chega-se mais perto.

Os figurantes do Zé do Vale são a Sereia, a Caninana, o Besuntão da Lagoa, o Engenho, o velho Tondoró, a velha Tondoró, o Caboclo, a Cativa, o Pica-pau, o Madu, a Maria Teresa, o Sarameu, a Mariquita, o Zé do Vale, dois soldados, o Presidente, o Pai do Zé do Vale, duas irmãs, a Mãe e uma infinidade de tipos extravagantes, não sendo dispensados o Boi, o Vaqueiro, a Caiporinha e outros, que tomam parte na cena, para a conclusão do brinquedo.

Serve de prólogo ao entremês uma tropa de meninas, vestidas de acordo com os seus papéis, que, depois das saudações do estilo, da banda de fora, entram com as figuras do reisado, menos o Boi, Vaqueiro, Tia Catarina, Cambrainha etc.

Logo que a música transpõe os umbrais da sala, os circunstantes arredam-se para os lados, deixando espaço bastante para a exibição folgada da peça.

E o reisado principia...

Sereia (dançando):

- Deus lhes dê boas-noites, senhores e senhoras.

Todos:

- Bravo da Sereia, como dança bem!

Sereia (cantando):

Vocês todos se admiram
De me ver assim cantar,
Quanto mais se vocês vissem
A Sereia lá no mar.

A essas palavras salta no meio o Besuntão da Lagoa, que é acolhido do seguinte modo:

Coro:

O Besuntão da Lagoa,
Ele é besuntão!
Quer queiram, quer não,
Ele é besuntão.

Esse personagem, que aparece com um jacaré, provoca o Madu, de cabeça grande, e esperneiam juntos, dançam e retiram-se, entrando após uma menina perseguida por um velho.

Menina:

Quem me dá por aqui novas
De um amor que já foi meu?
Quero saber a quem amo
E que trato foi o seu.

Velho:

Aqui'stá seu menininho
Com todos a rebolá,
Quem não gosta disto
Do que gostará?... (Dança)

Menina:

Vá-se embora, sinhô velhinho,
E não me venha atentar,
Pois eu sou menina e moça
'Stou no tempo de casar.

Velho:

Sou também menino e moço,
'Stou no tempo de pular...

Menina:

Vá-se embora, sinhô velho,
E não venha me atentar,
Eu gosto dos ioiozinhos
Com dinheiro pra gastar.

Velho:

E chegue pra lá,
Qu'eu chego pra cá;
Somos dois amantes,
Queremos casá.

A este diálogo cantado sucedem-se outros, que findam com o fadinho, os peneirados, as chulas, vitoriados sempre entre gargalhadas dos assistentes.

As figuras, no correr das cenas, vão dando o seu recado, desempenhando seus papéis. O Caboclo, por exemplo, que é o palhaço, jamais retira-se, fazendo momos, dizendo graças.

Reclamados pelo auditório, o Tondoró e a Tondoró apresentam-se, caracterizados esquipaticamente, sendo recebidos com uma roda de palmas.

A Tondoró:

Marido que Deus me deu...

Coro:

Tondoró!

A Tondoró:

Marido chega pra lá...

Coro:

Tondoró!

A Tondoró:

Marido, dá cá um abraço...

Coro:

Tondoró!

A Tondoró:

Olhe a cara do assassino...

Coro:

Tondoró!

A Tondoró:

Marido, dá cá boceta...

Coro:

Tondoró!

E os dois velhos, ao som da chula, sapateiam, palmeiam, gritam, dão umbigadas, abaixam-se, levantam-se do chão, requebram-se, fazem proezas, ao entusiasmo frenético da reunião, que desata as mais gostosas risadas.

Pequena pausa, ligeiro intervalo para o afinar dos instrumentos procede a entrada do Zé do Vale, que vem algemado e preso por dois policiais, com o Presidente, o Pai, a Mãe, as duas irmãs, que se agrupam no centro, isolados das demais figuras.

A recepção do Zé do Vale, o herói do reisado, é estrepitosa, entusiasta.

A família, vestida como no sertão, o Zé do Vale descalço, de calça arregaçada chapéu de couro e acorrentado, é empurrado pelos guardas para junto do Presidente.

O Pai, autoridade do lugar, fica surpreendido diante do preso, e diz:

Pai:

Grande novidade
Anda por aqui,
É chegado um preso
Lá do Piauí.

Mãe:

Sinhô presidente,
Se dinheiro vale,
Tome lá dez contos,
Solte o Zé do Vale.

Presidente:

Vá-se embora, dona,
Qu'eu não solto não,
Pois o Zé do Vale
É um valentão.

As irmãs:

Sinhô presidente
De minha estimação,
Solte o Zé do Vale,
Pela Conceição.

Mãe:

Tenho meu cavalo
De estimação,
Pra seu presidente
Não tem preço não.

Presidente:

Vá-se embora, dona,
Qu'eu não quero não,
Que o Zé do Vale
Tem mau coração,
E fez muitas mortes
Lá no meu sertão.

Pai:

Conta lá, meu filho,
Que isto não faz mal,
Como foste preso
No canavial.

Zé do Vale:

Ó sinhô meu pai,
Capitão-tenente,
Cada pé de cana
Era um pé de gente.

Seria um nunca acabar a reprodução desses versos, desses monólogos, desses diálogos da véspera de Reis nas províncias do Norte.

Aqui são os ranchos dos pastores nas tradicionais serenatas:

Ó de casa, nobre gente,
Escutai e ouvireis,
Que das bandas do Oriente
São chegados os três reis...

Ali a chegança dos Marujos no intermédio das lutas com os Mouros:

Entrega-te, rei mouro,
À nossa santa religião,
Que no fundo desta nau,
Há um padre capelão.

E aqui, além, mais longe, a estréia dos bichos no tablado dos presepes, o soar dos chocalhos e dos pandeiros, o sinal para a entrada do Boi, que põe remate aos reisados:

Ó ioiô, ó iaiá,
Oia o boi que te dá!...
Ora, entra pra dentro,
Ó meu boi Marruá!...