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DIA DE ANCHIETA
O venerável

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

De Rerum Anchietarum

Sebastião Pagano

Escrever sobre o Venerável José de Anchieta é difícil. Sua memória foi louvada por brasileiros e estrangeiros, em prosa e verso, na oratória e onimodamente. Mas algo se poderá frisar. Nobre de Espanha merece culto pelas suas virtudes cristãs e piedade heróicas. Deixou seu lar na Grã-Canária, Tenerife, San Cristobal de la Lacuna (Biscaia, dizem uns), onde nasceu a 19 de março de 1533, filho do rico Don Juan de Anchieta, parente dos Loyola e dos Guipuscoa (o padre Francisco Mateus, que não é genealogista, negou isto) e de dona Mencia Diz de Clavijo y Llerena - que pretendem ter ascendência cristã-nova; sua família era católica sincera.

Tive ocasião de reproduzir o brasão do padre Anchieta utilizado pela ASIA no convite de um banquete que realizamos. Seu pai não chegou em 1532 às Canárias porque antes de José haviam nascido outros seus irmãos. Faleceu no Espírito Santo em Irirityba ou Reritiba a 9 de junho de 1597 aos 64 anos, depois de vida toda voltada para Deus e salvação das almas. Sua canonização é questão de tempo e depoimento.

A política religiosa da Coroa e o Apóstolo do Brasil - Indubitavelmente foi Eduardo Prado quem, em 1897, comemorando o terceiro centenário da morte de Anchieta, levantou o nome jesuíta que por mais de um século estava olvidado e escarnecido. Convocou figuras das maiores do Brasil, aplaudidas por todos, mesmo por Capistrano de Abreu, para as "Conferências Anchietanas", como hoje as realiza Júlio de Mesquita Filho, presidida por Campos Sales; e realmente renovaram nossa História. Católicos, especialmente os jesuítas, jamais poderemos ser-lhes suficientemente gratos.

Reabilitados os jesuítas das injustiças que lhes cometeram, com isto, um sopro de catolicidade menos arredia se fez sentir depois da primeira década de exílio republicano, agnóstico e agressivo. Quem o negará? A conferência de Eduardo Prado, de umas cem páginas, A Companhia de Jesus e a colonização do Novo Mundo, é antológica: primor de erudição e arte. É Júlio de Mesquita Filho quem hoje renova essa consagração dos Jesuítas que a severidade do marquês de Pombal proscrevera e graças a Dom Pedro II - narro-o no meu livro inédito Dom Pedro II e a questão religiosa -, voltaram ao Brasil em profícua ação como Sociedade Brasileira de Educação.

Santo Inácio de Loyola, esse nobre de Guipuscoa que a Inquisição perseguiu pelo modo ardente como pregava aos pobres, unindo um pugilo de nobres formou a Societas Jesu seguindo os ditames da cavalaria, imitando os Estatutos da Ordem dos Hospitaleiros de São João ao tempo de Carlos V, "dar um braço às armas feito para servir aos pobres Nossos Senhores" - aliás a nobreza deu 80% dos santos da Igreja.

José de Anchieta, para servir aos pobres, pediu sua inclusão na Companhia dos Soldados de Cristo sob o voto especialíssimo da defesa da autoridade do Sumo Pontífice. Sociedade monárquica, fê-la Santo Inácio para evitar a "controvérsia" liberal. Princípio unitivo de doutrina e de ação, o Papa sempre foi, para os Jesuítas em particular, o ponto de apoio da autoridade espiritual que se completava com a autoridade do Rei ungido, no binômio Igreja e Monarquia. Era o espírito de Anchieta. E Dom João III, para dar doutrina unívoca ao Brasil, chamara a si os Padres da Companhia nos seus estados, pois ajudara-a no reconhecimento canônico, e a ele os padres davam conta, sustentando-os do seu real "bolsinho" que só depois disso foi possível os dízimos completarem.

Reis Missionários que eram os de Portugal (não se trata de um título, mas de uma função de que o Papa incumbiu os Reis de Portugal e da Espanha, com o Padroado, e se séculos depois surgiu algum regalismo que críticos jeremiosos exorbitaram contra a verdade histórica, fazendo disso um drama que a diplomacia vaticana deveria ter modificado, de comum acordo, em tempo, o benefício anterior foi incomensurável) o santo encargo foi levado a efeito com os proventos da Ordem de Cristo (continuadora dos Templários), da qual os reis eram os grão-mestres, e foi esta a Ordem que custeou a colonização do Brasil e fez a conquista e catequese de além-mar. A Ordem permitiu tudo, até a criação do Bispado de São Paulo. A fé e o império andavam esses reis dilatando, conquistando terras para a difusão da fé em Cristo.

A missão evangelizadora e civilizadora da Coroa se fez em bom acordo com os loyolistas para que as idéias dissidentes dos reformados ou progressistas da época não fizessem caos nas terras a ganhar para Cristo e a Civilização, pois grave dispersão doutrinária verificava-se com os padres progressistas antes da vinda do primeiro Governador Geral do Brasil, em 1549, com os primeiros Padres da Companhia. Pensem os afoitos progressistas hodiernos: o Brasil sob a controvérsia mental não seria católico.

Podia dizer-se que, em consonância com o Papa e com o Rei, os Jesuítas estavam oficialmente incumbidos de esteiar a unidade espiritual brasílica que o Governo Geral devia preservar. Daí darem a El-Rei conta os Padres, pois a Missão era comum. O princípio unitivo religioso e político fez prevalecer a unidade filosófica, moral e social que implicou na lealdade de ação de portugueses e brasileiros aliados no mesmo fim de engrandecimento desta terra.

Na dispersão das idéias contemporrâneas em que católicos há que rendem homenagem aos erros filosóficos de outrem, sob pretexto de axiologia, nada há que se construa em união e em paz; embora vendo que errados, os comunistas vencem por unidade de princípios e de ação. Foi por esse motivo que o saudoso padre Arlindo Veira, S.J., numa formosa conferência sob o nome de Anchieta a serviço de Deus e de El-Rei Nosso Senhor, começou dizendo que "o santo Rei Dom João III" foi o grande evangelizador do Brasil em conjunção com os padres da Companhia, que pessoalmente protegeu na sua ação.

José de Anchieta, mais que outros irmãos de hábito, timbrou em demonstrar esse sentido unitário e serviu a alguns Reis de Portugal e a um Rei de Espanha e de Portugal, Felipe II, que o grande El Greco no Entierro del conde de Orgaz pôs entre os santos. Se o "armistício de Iperoig" levou os franceses à derrota, recuando na sua ambição, voltando à porfia no Maranhão e à liça política com Portugal na sucessão do cardeal-rei Dom Henrique - em franca disputa genealógica, não de intriga, em que se empenhara a sobrinha do Papa, a nobre rainha Catarina de Medicis -, Felipe II ganhou não por claros direitos que pertenciam aos Braganças, especialmente a Dona Catarina e não ao Prior do Crato, Dom Antônio (v. O Conde dos Arcos e a Revolução de 1887 de Sebastião Pagano) apoiado por Catarina de Medicis desde que lhe desse o Brasil.

Os primeiros na sucessão eram os Bragança, mas triunfaram os Habsburgo, por conveniência internacional apoiada pelo Papa, na continuação da "política do sigilo" pró-espanhola do Vaticano. Anchieta serviu Felipe II, o campeão católico do século, com a mesma dedicação, porque a obra era a mesma e os princípios também. Nada mudou senão a dinastia numa monarquia dualista. Não se vêm motivos para a possível remoção de Anchieta. Ao contrário, ficou onde estava. Nem se cogitara disso. O rei seguia a mesma política católica. E se a linha genealógica de sucessão tivesse, pelo Direito dinástico, dado precedência à França - que não tinha possibilidades, pois disso estava muito distante - como os princípios eram os mesmos, nada mudaria.

Sabia Anchieta que dos princípios é que adviria a grandeza do Estado do Brasil. Era um soldado. Dedicado à sua aldeia, profetizou que São Paulo de Piratininga seria grande metrópole, como é. Não fora sua persistência, bondade imensa e inteligência esclarecida que descobria soluções para dificílimos casos, São Paulo não teria subsistido. Vã é a tentativa de diminuir Anchieta para alçar Nóbrega; nem este imenso demiurgo precisa na sua glória, e sentiria injusto, desse estratagema, apenas por espírito de lusitanismo ou espanholismo, porque esses santos homens, um português e outro espanhol, estavam a serviço da Igreja Universal, entidade etnárquica, para a qual todas as nações são iguais no seu amor; e a serviço de Reis-missionários, que "a Fé e o Império andavam dilatando".

El-Rei, Inácio de Loyola e o Papa eram os chefes hierárquicos e hieráticos desses titãs. Deu-se Anchieta como refém para salvar povos, uniu índios para repelir invasores, abriu caminhos para unir a terra e impavidamente realizou tudo o que se depreende da epopéia de Colombo e dos Reis Católicos ciosos de corresponderem à promessa divina de que os confins da terra pertenciam à Igreja Católica, ante a tempestade reformista que se aproximava, o que foi perfeitamente atingido. Os últimos desvãos do mundo unidos à Igreja Universal.

Deve-se atribuir ao sistema político de então, em plena harmonia com a Santa Sé (Liga das Nações Cristãs) o êxito da catequese em tão grande unidade. O preconceito anti-monárquico, anti-histórico (v. Louis Dumir, Les prejugés enimis de l'Histoire) quer negar esta verdade histórica que se reproduz numa conversão de Constantino, de Clovis ou outros príncipes que "facilitaram" a propaganda fide, salvo casos de enormes esforços posteriores.

Conhecer o sistema da época é conhecer o porque da ação. Os índios eram os "autóctones" do Brasil e o espírito do povoamento ou colonização foi o espírito cristão da Monarquia Portuguesa, no modelar humanitarismo que a profunda caridade dos Reis de Portugal daquela dinastia que acabou em Dom Sebastião o último cruzado e num cardeal fez com que o silvícola, longe de ser combatido, fosse integrado à civilização cristã.

Esse foi o grandioso trabalho da catequese em que os Padres se desdobraram e dentre eles Anchieta. Daí a razão porque a Metrópole fez Regulamentos magníficos - hoje esquecidos - que são estupendas páginas filosóficas e jurídicas num admirável esforço para melhorar a vida dos pobres índios nus e rudes, incultos e pagãos. E essa incorporação verificou-se tão bem que, dentre eles, saíram padrões de cultura e dedicação, como um Felipe Camarão ou um Rondon que, não fosse a catequese de seus pais, não seria o que foi, não obstante recusar-se a morrer católico e no momento extremo exclamou "Viva a República". A liberdade dos índios foi a página mais bela da Colonização. Por ela lutaram gênios como Nóbrega, Anchieta e outros como o incomparável Padre Antônio Vieira.

A política do sigilo não trouxe à tona, na época, o porque de arrancar-se Cabral às terras africanas para acostar nestas partes da América que antes foram cautelosamente sondadas. A política do sigilo da Coroa mandou destruir Santo André da Borda do Campo e fundar São Paulo no ponto lindeiro das terras portuguesas com as castelhanas. E a política do sigilo fez com que a pequena capela inicial da catequese missionária viesse a transformar-se em núcleo demográfico para servir de sede ao Bandeirismo que "alargaria" o chamado meridiano de Tordesilhas que deixou os portugueses, então senhores da ciência náutica, com menor quinhão que os castelhanos. Na política do sigilo loyolistas em harmonia com a Coroa realizaram a grande programática que o futuro engrandeceu e deu-lhes imensa glória e gratidão.

Em primeiro, a conquista dos índios, pacificando-os em Deus e com os homens. Depois, a cultura, povoamento cristão moralizado, dando forma jurídica associativa e aproveitamento das riquezas nativas pelo trabalho estimulado para frutificar num incomparável futuro. Se não foram os Jesuítas nem o Padre Anchieta os fautores de toda a unidade nacional, dando-lhes caráter contínuo territorial homogêneo, porque a Coroa é que tinha em mira tal empresa, para a qual enviara à Nobreza Militar e dera planos aos Bandeirantes, contudo, os Padres seus colaboradores fizeram a paz, unidade moral e espiritual, pois o sacerdote não visa unir territórios mas salvar almas. Mas agiam segundo um programa de El-Rei que lhes dava meios e garantia de ação.

O grande missionário e seus feitos - Não se esqueça na simplicidade, bondade e humildade de Anchieta, como nos santos, a energia de ação, o vigor das realizações audaciosas, a coragem enfrentando problemas difíceis cuja solução atingiu com grande disposição pessoal, não apenas pela proteção régia verificada no conjunto. Não foi ele o místico quietista; sua vida contemplativa era vivida na caridade sob a total certeza que tinha da divina proteção entregando-se à inteira vontade de Deus. Não quis os enganos da carne e os desenganos do espírito, mas a obediência religiosa com suas virtudes. Chegava a ajudar oito missas por dia, narram Simão de Vasconcelos, Pero Rodrigues e outros, e é certo. Sofria com isso mas, imitando os santos, "não pode o corpo receber mal quando a alma recebe tanto bem". O corpo é sombra da alma, mostra-o o abbé Th. Moreux no seu Que deviendrons nous après la mort?

Resistiu ao conflito. Soube sofrer no amor. O mal agravou-se, contraindo "lesão disforme no espinhaço e costelas" acurvado a um lado. Não foi queda de escada, nem exagerada lesão. Na Iconografia de Anchieta Aureliano Leite fala disto, e o mais antigo e melhor retrato de Anchieta mostra-o de olhos grandes e profundos, de bigodes e embuçado numa capa, não tão miudinho como geralmente o representam. Seu sofrimento foi a ascensão na espiritualidade; seu cilício.

DÚVIDA - Anchieta jovem, em óleo de Maria Luísa? Na obra de onde foi reproduzido, uma errata indica que na verdade seria o retrato de Manuel de Paiva, exposto na Casa de Anchieta/Pátio do Colégio, na capital paulista. Outra fonte (História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, 1997) mostra a imensa imagem, espelhada, afirmando ser de Anchieta, ignorando ou desmentindo a errata da enciclopédia Grandes Personagens..., que foi usada como fonte de consulta para a obra de 1997
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Temeu não ser aceito na Companhia. Provincial em Portugal, o Padre Simão Rodrigues de Azevedo, seu amigo, dissuadira-o, entristecendo-o. Aceito, a doença continuou por três anos e os médicos recomendaram que fosse mandado para os benignos climas do Brasil, cuja alimentação era mais sadia. Com o favor de El-Rei Dom João III, como Irmão partiu de Lisboa a 8 de maio de 1553, chefiado pelo padre Luís de Grã, reitor do Colégio de Coimbra, e os padres Braz Lourenço, Ambrósio Peres e três Irmãos, João Gonçalves, Antônio Blasques e Gregório Serrão. Acompanhavam o 2º Governador Geral do Brasil, Dom Duarte da Costa, filho do fidalgo Dom Álvaro da Costa que fora embaixador de Dom Manuel junto a seu cunhado Carlos V. Era o terceiro grupo de jesuítas.

Discute Simão de Vasconcelos a data da partida, contestando Pero de Maris na Vária História livro 5º, cap. 2, que diz ser de 1552, pois o próprio Anchieta da sua pena afirmou ser 1553, chegando à Bahia a 13 de maio de 1553; confirmam-no Nicolau Orlandino nas Crônicas Gerais da Companhia livro 13 nº 68, o Padre Estevão de Paternina na Vida do Padre José pg. 23 § 44 e o Padre Baltazar Teles nas Crônicas de Portugal parte 2 L. 5 cap. 6.

Inácio de Loyola, o elegante fidalgo e audaz capitão, depois de coxo foi correr mundo arrebatando almas. Anchieta, depois de acurvado, carregou a Cruz de Cristo nas selvas e suas nobres mãos serviam na cozinha, despensa, feitura de sandálias e outros rudes trabalhos feitos com amor e alegria. Navegantes, religiosos, índios e fidalgos por ele foram servidos, acolhendo às vezes vinte pessoas na sua casinha de barro e palhas como escola, enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha, despensa, ao contrário do solar onde nascera.

Quando necessário, era calorosa sua ação. Movimentado, vivo, todo trabalho nos dias 9 e 10 de julho de 1562, quando os índios invadiram São Paulo. Audacioso e astuto quando salvou o jovem guaianás que com Tibiriçá à frente, convertido mas voltado ao canibalismo, estava para ser imolado diante das feiticeiras. Quase temerário, não fossem suas virtudes, enfrentou o cacique para impor-lhe e aos seus conduta cristã sem temer ser morto. Estrátego na defesa do futuro Rio de Janeiro sob a Confederação dos Tamoios, foi talvez o primeiro a organizar um serviço secreto no Brasil, enviando mensagens e apoiando-se com segurança nos índios fiéis.

Notável ação teve, com vigor, em ocasiões várias. Ria das comédias que inventava para os índios e cantava com eles ou marchava esportivamente para Santos pelos sendeiros do Padre José, a atual Via Anchieta que lhe seguiu o rumo. Resoluto, sem medo, enfrentou feras ou as fúrias do mar, como no naufrágio que sofreu, e é incompreensível que dormisse sossegado, confiando nos índios, naquela pedra perigosíssima que se chama "cama de Anchieta", num ponto agitado do mar de Itanhaém onde muitos encontraram a morte.


Formação rochosa conhecida como Cama de Anchieta, em Itanhaém/SP
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Se Nóbrega em 1554 fundou a capela da Missão, foi Anchieta quem, em 1558, fundou o Colégio que atraiu os índios, e sem eles São Paulo teria sido ponto efêmero. Com uma vintena de catecúmenos conseguiu a fixação. Era a política do sigilo em ação, fazendo sempre presente a dedicação da Coroa somada à evangelização apostólica desses primeiros padres que deram força à Companhia de Jesus para chegar a ser o que foi e realizar o que conseguiu.

Ensinando, cantando, representando, o primeiro mestre-escola de São Paulo fixou a população e a aldeia fez-se vila, cidade, metrópole. Em seu embrião, o esforço missionário, catequético, pedagógico, deteve as forças dispersivas. Nesse primeiro período houve muita compreensão, aliada à ação persuasiva do mestre Anchieta, que estabeleceu a mútua confiança entre brancos e índios.

O historiador Lopes Herrera, falando disso, citou a carta de Anchieta a Inácio de Loyola, de agosto de 1554, relatando aspectos da fundação da aldeia, documento que encontrou no arquivo da Província de Toledo, guardado pelos Jesuítas em Chamartin de Toledo. Anchieta ficou só entre os índios. Tinha vinte anos. Exemplo para a imensa mocidade sem ideal e sem espírito de sacrifício de hoje!

Ademais, deve-lhe São Paulo, em seu crescimento, pontos de ligação: as aldeias de Pinheiros e de São Miguel, convergindo-lhe como ponto de interação entre dois novos refúgios de índios, abrigo certo contra silvícolas e intrusos. E foi Emboaçaba, em Pinheiros, o fortim de defesa distante de São Paulo caminho do Interior, como São Miguel caminho do Rio de Janeiro.

Nem teve Anchieta tempo para ordenar-se sacerdote. No Concílio de Trento (fins de 1545 a dezembro de 1563) indagou-se de Manoel da Nóbrega a razão, respondendo - "porque não há quem o substitua". Só em 1566, com 33 anos, recebeu ordens. vocação certa; integração total às verdades religiosas e à graça divina; servo da Virgem Maria - de outro modo não se compreende que diante da provocadora nudez íncola, sua castidade fosse um castelo blindado com defesas invulneráveis. Quando da paz de Iperoig, dando-se como refém, a Nóbrega e Anchieta os tamoios ofereceram filhas e irmãs. Recusaram, e Anchieta era apenas Irmão! Escreveu então o poema à Virgem.

Nem pretendeu abandonar a selva, a montanha, o mar e todos os perigos e descomodidades, trocando-os pelas pequenas regalias urbanas. De sotaina rota e suja às vezes e pés no chão, conquistou grandes partes do Brasil para Deus, longe de algum sibaritismo hodierno dos que com fáceis meios deixam perder almas com culposa indiferença.

O payé-guassú (pagé-guaçú), pai grande, o "amarra mãos" dos índios, entrou logo a conhecer-lhes e falar-lhes a língua na qual poetou publicando em 1595 uma Arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil, além de diálogos espirituais, Comédias ou Conservações que moralizavam e instruíam ao serem representadas diante do povo com o qual ria e doutrinava.

Aos 14 anos ingressara na Universidade de Coimbra, então em grande fastígio, e brilhou entre seus condiscípulos, mesmo seu Irmão. Aprendeu tudo com impressionante rapidez: Filosofia, Dialética, Latim, Letras e a língua portuguesa. Sua memória era prodigiosa. Exímio em Latim, ensinou-o a companheiros de hábito; escreveu uma Gesta de Mem de Sá e seu poema De beata Virgine Dei Matre Maria (5.000 versos) publicado em 1940 pelo Arquivo Nacional com excelentes comentários, é verdadeiro tratado de Mariologia e História da Sagrada Família.

Purista no vernáculo, mostra-o sua Correspondência, e sua Dissertação sobre a história natural do Brasil, importante contribuição que admirou Saint-Hilaire; sua Vida dos religiosos da Companhia dos Missionários no Brasil são biografias que revelam o historiador conciso e autêntico. E em que desconforto produziu isso tudo, sem auxílio de livros!

Biografias - Jean de Bolés - João de Almeida - Em nota que enviou de Lisboa a 10 de maio de 1897, disse Eduardo Prado referindo-se à Vida do Padre José de Anchieta do Padre Pedro Rodrigues: "Na Biblioteca Nacional de Lisboa (no fundo de Alcobaça) há uma cópia desta Vida de Anchieta com muito maior número de capítulos e com grande variante e mais notícias. Consta de 59 páginas, e de uma nota do fim vê-se que foi copiada no ano de 1620 por Cristóvão de Souza Coutinho (?). É precedida de uma carta do Provincial P. Fernão Cardim, ao Geral Cláudio Aquaviva, da Bahia, de 8 de maio de 1608, de uma dedicatória-prefácio do P. Pedro Rodrigues aos Padres da Companhia e da aprovação de Mateus da Costa Aborim, administrador da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro de 10 de maio de 1608. É dividida em quatro livros. O livro I tem 15 capítulos; o livro II, 9 capítulos; o livro III, 9; o livro IV, 9. É seguido de uma lista dos Governadores Gerais do Brasil do ano de 1549 até o ano de 1609, e dos Provinciais da Companhia no Brasil no mesmo período e dos Visitadores Gerais desta Província. Não está datado como esta cópia. Lisboa, 10 de Maio de 1897 (ass.) Eduardo Prado".

"Na antiga numeração deste fundo o ms. figurava sob o nº 431 e na moderna séc. XVII nº 306. (ass.) E. Prado".

Publicou-a o volume XIX, 1897, pg. 49 e seguintes dos Anais da Biblioteca Nacional. Deve o Brasil ao monarquista Eduardo Prado a cópia, às suas expensas, como sempre o fazia enriquecendo nossos arquivos, bibliotecas e mapotecas, desses documentos, dessas cartas, da nova Vida do Padre Anchieta e das Relações aludidas.

A Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus. Quinto Provincial que foy da mesma Companhia no Estado do Brasil é o primeiro registro da santidade heróica do grande Apóstolo do Brasil, sobre a qual foram calcadas todas as outras biografias dele. E o diretor da Biblioteca Nacional, Manoel Cícero Peregrino da Silva, declara-o em nota à página IX do volume XXIX de 1907 dos Anais aludidos: "conforme havia observado Eduardo Prado em nota de que fez acompanhar a cópia do manuscrito da Biblioteca de Évora Vida do Padre Anchieta pelo Padre Pedro Rodrigues publicado no volume XIX destes Anais, há notáveis diferenças entre esse códice e o que com o mesmo título existe na Biblioteca Nacional de Lisboa".

"Além das repetidas variantes do texto, há na cópia de Lisboa, feita a 6 de maio de 1620 por Cistóvão de Souza Coutinho, vários trechos e capítulos que não figuram no Códice de Évora, visivelmente incompleto". O Códice de Évora (lod. ex/117) é dividido em três livros com 25 capítulos, tendo ao fim a data: "na Bahia a 30 de janeiro de 1607".

Resumo aqui algo do que escrevi a respeito, mas lembro que os biógrafos referem-se a inúmeros milagres anchietanos, que a Igreja está julgando. Infelizmente, o racionalismo e a balbuciante Parapsicologia reduzem o sobrenatural a nada. Deixarei minhas observações a respeito para outra ocasião.

As conversões que fez impressionam, especialmente a de João de Bolés, que depois de contaminar a fé popular pela sua inteligência, acabou sendo enviado pelo Padre Luís de Grã para a Justiça Eclesiástica do Bispo da Bahia. Em 1567, porém, o Padre Anchieta converteu-o. O Bispo não procedeu contra ele, remetendo-o para o Rio de Janeiro a fim de responder por graves delitos civis que cometera. Julgado e condenado à morte pelo governador Mem de Sá, o Padre Anchieta correu a aliviá-lo nesse transe exprobrando o algoz imperito que o torturava. Não queria, ao fim, que o convertido no momento extremo renunciasse à Fé católica, e a caridade nesses casos deve exceder-se. Não pediu que apressassem a morte, mas que a dessem humanamente. As penas eclesiásticas, conhecia-as, pois suspendem de ordem o sacerdote que acelera a execução da morte em qualquer ocasião que seja, ainda piedosa. Nem o assassinato nem a eutanásia. A suspensão teria remédio pela absolvição da Igreja, mas a perda daquela alma encolerizada não. Se por isso, "vivesse eu suspenso a vida inteira", dizia.

Como os mal informados narraram o fato é bem sabido. Dizem uns que Anchieta puxou o condenado pelos pés para acelerar-lhe a morte. Fora enforcado? Que espécie de tortura lhe fizeram? Outros, que de Bolés foi posto em liberdade e voltou convertido para a França. Inimigos da Fé católica incriminam Anchieta. Ora, fosse provado, a Igreja não o teria declarado Venerável.

Simão de Vasconcelos, no volume 2º, página 125, edição da Imprensa Nacional em 1943 (a primeira edição é de 1673) da Vida de Anchieta relata que um dia saiu Anchieta do seu cubículo dizendo ao porteiro que logo viria correndo um homem que cometera um homicídio; que a ele deixasse entrar mas não aos ministros da Lei. Mal saiu, pela porta entrou alguém fugindo ao Alcaide e à pena infalível. Que gosto tinha Anchieta em salvar os homens e socorrer os fugitivos e condenados! Por que ao pobre arrependido João de Bolés daria diverso tratamento?

Sua rara humildade, suas virtudes paulinas de cansaços, fomes, sedes, frio, estorvos, chuvas e calores, padecimentos mil, ingratidões, perigo de vida em meio a gente bruta, irritada, queixosa, comendo maus alimentos, recebendo tudo com sublime caridade, oportuna energia, coragem, fidelidade, compreensão, simplicidade, amor a Deus, confiança na Virgem, temor ao pecado, prática das mais acrisoladas formas de piedade, tudo por amor a Cristo, não o levariam a tal duplicidade criminosa.

As conversões formidáveis que operou como a do índio Adão juntam-se à santidade que soube incutir noutros. Um santo há que foi formado da imitação das suas virtudes: o Padre João de Almeida, como ficou conhecido o inglês John of Meade nascido em Londres em 1572, falecido em 1654. Simão de Vasconcelos, edificado pelas suas virtudes, escreveu-lhe duas biografias. A Vida do Padre Joam de Almeida da Companhia de Jesus na Província do Brasil, publicada em Lisboa em 1658 in. f. pp. 406 na Imprensa Crasbeekiana com um retrato gravado por Richar Collin, de Anvers. Outra, a Continuação das maravilhas que Deus é servido obrar no Estado do Brasil, por intercessão do mui religioso e penitente servo seu o venerável P. João de Almeida da Companhia de Jesus, impressa em Lisboa em 1662, com 16 páginas in. f. sem numeração, na oficina de Domingos Carneiro.

Conta o Padre Serafim Leite que o Padre Antônio de Macedo utilizou-se dela na sua obra latina Vita Ioannis de Almeida e Foley nos seus Records of the English province tomo VII, 1321-1339.

Edificado com João de Almeida, escreveu Vasconcelos, depois, a sua Vida do Venerável Padre Joseph de Anchieta da Companhia de Jesus, Taumaturgo do Novo Mundo na província do Brasil, dedicada ao coronel Francisco Gil de Araújo, grande admirador de Anchieta, e publicada em Lisboa na oficina de Ioam da Costa, MDCLXXII, in. f. pp. 593, reproduzindo nesse volume, pela primeira vez, o poema de Anchieta De Beata Virgine Maria, com sua Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil: e do que obrarão seus filhos nesta parte do novo Mundo, dedicada a El-Rei de Portugal porque, sem ele, é impossível imaginar que a fé católica tivesse pegado no Brasil, graças à unidade do poder e a fé católica da Monarquia Portuguesa em consonância com o Papa, vingou e é estranhíssimo que nada se fale desse fator preciosíssimo!

Fazedor de santos foi Anchieta. E a Santa Igreja reconheceu-o, a João de Almeida, Venerável. Com nove para dez anos, seus pais, nobres empobrecidos, passaram-se para Portugal, quando fervia a ferocíssima perseguição aos católicos na que fora chamada "ilha dos santos". O senhor Bento da Rocha, que viajava no mesmo navio, afeiçoou-se à pureza do menino e o fez convenientemente educar. Em 1589 esse benfeitor careceu vir ao Brasil e trouxe João de Almeida, com 17 anos. Em Pernambuco, Almeida ficou na Companhia de Jesus, que o enviou a Bahia a fazer noviciado de um ano. Seguiu para a Capitania do Espírito Santo, "lugar onde muito se padecia no serviço das almas" e aí teve por mestre o Padre José de Anchieta, então com 56 anos, no esplendor da sua santidade e já quinto Provincial da Companhia de Jesus.

Ambos foram pelos sertões brasílicos, iniciando Almeida, com raros intervalos, uma profícua vida de missionário na espinhosa dedicação de conquistar almas para Deus. Sua palavra inflamou-se, dotado do Espírito Santo, e as prodigiosas conversões que operou são verdadeiros milagres. Faleceu cheio de dias em 1653 (outros dizem 1654) e, inspirado nesse exemplo, Simão de Vasconcelos narrou-lhe minudentemente a vida com tudo o que considerou, e assim era tido, como miraculoso. Força Provincial da Companhia.

O Padre Anchieta formou doze discípulos, perfeitos todos na fé e zelo da salvação das almas, mas Almeida foi o maior, praticando profecias, curas, milagres, adivinhações e portentos. Carregou lenha, ajudou na cozinha, varreu chãos, serviu como escravo nos humildes e desagradáveis serviços. Abrandou as fúrias do mar, domou um monstro marinho, fez brotar água em campo estéril, à índia Grimanesa cobrou a vista e a vida; consertou miraculosamente um braço quebrado e outros portentos obrou. Seguiu o mestre.

Sua rara pureza de anjo confundia "os mais cuidadosos amadores desta virtude", sopesando suas carnes com rigores e duras penitências; amou a Deus que fez do seu coração um céu; amou o próximo de forma ultra humana; amou o Padre Anchieta de tal maneira que repetia tudo dever das maravilhas do seu mestre. Por vezes fatos menos importantes são levados à conta de milagres ou mesmo são apontados fatos naturais como sobrenaturais do que os verdadeiros santos nunca fizeram idéia, porque a santidade não se vê a si mesma nem o santo a constata, sempre acusando-se de "mísero pecador". Há cuidadosa prudência nesse julgamento. Suas virtudes foram heróicas, o que é condição de santidade. O Papa Bento XIV deixou rigorosas instruções para os processos canônicos. Voltaire considerou esse Papa uma das maiores inteligências do seu tempo.

Foi o Papa Clemente XII quem, a 31 de julho de 1736, confirmou as Virtudes Veneráveis do Servo de Deus José de Anchieta. Empenhou-se muito o rei Dom João V, na sua grandeza e bondade tão pouco conhecidas no Brasil, e a ele já se faz justiça histórica em Portugal.

Mandou El-Rei para Roma 188 mil cruzados para indulgências, bulas e canonizações, criação do Patriarcado de Lisboa, despendendo ainda mais do triplo disso em conventos, obras religiosas, dotações a cardeais, núncios e igrejas, gastando nessas obras religiosas e públicas todo o dinheiro que recebeu do quinto do Brasil (que, aliás, pelas estatísticas e documentos, sabe-se que o Rei não recebeu nem um terço do que deveria receber pelo Estatuto da Colonização, e Roberto Simonsen, em sua História Econômica do Brasil, prova que era a primeira vez, depois de dois séculos, que do Estado do Brasil - como Simão de Vasconcelos e todos o chamavam - se começava a ressarcir a Metrópole com seu heroísmo e enormes gastos feitos para a criação do Brasil, que não foi gratuita ou fácil empresa).

Há despesas numa beatificação, mas sobretudo foi uma demonstração de apego religioso e gratidão do Rei. Fez também D. João V grande honra a São Paulo fazendo erigir-lhe o Bispado, dotando de tudo a sua catedral (v. a respeito o livro de José Pedro Leite Cordeiro) - ainda lá estão lampadários e banquetas de prata doadas pelo Rei e seus sucessores.

Foi esse mais um dos intensíssimos serviços que a Monarquia portuguesa prestou ao Catolicismo que, graças ao seu amparo, fixou-se no Brasil. E isso é deploravelmente esquecido por católicos e parte do Clero. Colhem-se os frutos e esquece-se a árvore que Anchieta tão lealmente serviu. O pedido mais expressivo dos últimos tempos foi feito em 11 de junho de 1877 pelo Episcopado Brasileiro através da Princesa Imperial Regente Dona Isabel. O processo tinha dormido na Sagrada Congregação dos Ritos e o grande Papa Pio IX, tão cheio de virtudes em parte também esquecidas com seus imensos méritos, mandou reabri-lo.

Em quatro séculos não há um santo declarado no Brasil, não obstante os 40 mártires e o crédito obtido nos Céus pela repulsa ao invasor luterano (30 anos, na Bahia e em Pernambuco) e calvinistas no Rio de Janeiro, por causa da Fé católica.

Conta Barleus quanto sofreram os católicos com os luteranos no Nordeste. Os Estados Unidos, com tanta heresia, já os tem. Mas, na terceira sessão do Concílio Vaticano II, muitos bispos pediram menos canonizações de religiosos e maior rapidez no exame das causas. Não se deve excepcionar por ser religioso o santo. Leigos e religiosos que merecerem ser declarados santos por vezes esperam séculos, como Santa Joana d'Arc. É a segurança dos exames que prudentemente pede alguma demora e o juízo humano sempre é inclinado ao panegírico nesses casos.

Excluído o que não é, é um direito da Igreja tratar desses assuntos com o devido rigor. Uns, aliás, são declarados com rapidez. Pelos manuscritos e virtudes heróicas afirma-se que ainda há insuficiência para a beatificação e canonização de Anchieta. A obediência faz calar, mas a glória de Anchieta, disse Simão de Vasconcelos, com algum exagero, talvez, "no orbe todo não cabe". E dele jamais se dirá suficientemente, e é o limite de espaço que nos faz parar aqui ao tratar "das cousas de Anchieta" - de rerum Anchietarum.

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