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DIA DE ANCHIETA
O menor de todos

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Ínfimo da Companhia de Jesus

Maria José Duprê

Era dessa maneira que o Padre José de Anchieta assinava as cartas que enviava desta Piratininga aos jesuítas de além-mar. Às vezes assinava em latim: Minimus Societatis Jesu. Foi sempre o mais humilde, o ínfimo, o último, realizando assim as palavras do Evangelho: os humilhados serão exaltados.

Os atributos que recebeu ou foram-lhe outorgados, ou ainda alcançados por seus próprios méritos aqui nas terras brasílicas, são inumeráveis, e pode-se observar que o maior deles, o dom mais sensível, mesmo o sobrenatural, foi seu amor ao próximo.

Ele amou esta terra e esta gente com o amor devotado do Apóstolo, com o amor entranhado do Missionário, com o amor convicto do Santo.

José de Anchieta foi um caçador de almas. Foi o primeiro humanista das Américas, foi o pacificador, o colonizador, o confessor, o enfermeiro, o professor, o pai dos índios, o poeta, o catequista, o pregador, o dramaturgo e o taumaturgo.

Sobressai o poeta: "E a mim, o mais pobrezinho dos teus servos, orna-me com tua humildade, sem a qual nem a ti nem ao Senhor agradarei".

Ele agradou ao Senhor, não talvez pela pobreza ou pela modéstia ou pela humildade em que vivia, mas sim porque cumpriu fielmente o primeiro mandamento: Ama o próximo como a ti mesmo. E agradou à Virgem porque foi manso de coração, foi quase obscuro, foi o Minimus Societatis Jesu.

Esse homem só, doente da espinha, fraco e pobrezinho, foi capaz de ações tão heróicas que parecem divinas. No meio humano hostil em que viveu, entre a natureza agressiva que o rodeava, tudo suportou com heroísmo porque acima de todos os dons, além dos atributos, ele seguiu as palavras de Cristo. Amou o próximo.

O Padre José de Anchieta chegou ao Brasil em 1553, desembarcando na Bahia. Em janeiro de 1554, foi nomeado regente do colégio de Piratininga, colégio fundado nesse mesmo mês por ele, pelo Padre Manoel da Nóbrega e outros que tinham vindo da Bahia.

O próprio Padre José de Anchieta disse em carta escrita para Roma ao fundador da Companhia de Inácio de Loiola, em agosto de 1554, portanto poucos meses após a fundação do colégio de Piratininga: "Aqui se fez uma casinha de palha com esteiras de canas por porta, em que moraram algum tempo, bem apertados, os irmãos; mas este aperto era ajuda contra o frio, que nesta terra é grande com muitas geadas".

Mais adiante lemos: "O vestido era mui pouco e pobre, sem calças nem sapatos. Para mesa usaram algum tempo folhas largas de árvores em lugar de guardanapos, mas bem escusavam toalhas, onde faltava o comer, o qual não tinham d'onde lhes viesse senão dos índios que lhes davam alguma esmola de farinha e às vezes mais raras, alguns peixinhos e caça do mato".

O padre Simão de Vasconcelos escreveu em 1680, baseado nas cartas e memórias do próprio punho do padre José: "Aqui nesta pobreza se abriu a segunda classe (de gramática que teve o Brasil, porque já na Bahia se tinha aberto uma); freqüentavam-na todos os nossos irmãos e bom número de estudantes brancos e mamelucos que acudiam das vilas circunvizinhas. Lia esta classe o irmão José de Anchieta, ocupação em que perseverou alguns anos, com grande aproveitamento de seus discípulos e com maior opinião de sua santidade... No mesmo tempo era mestre e era discípulo, e os mesmos lhe serviam de discípulos e mestres, porque na mesma classe, falando latim, alcançou das falas dos que o ouviam a mór parte da língua do Brasil, que brevemente aperfeiçoou com tal excelência que pôde reduzir aquele idioma bárbaro a modo e regras gramaticais, compondo artes d'elas, tão perfeitas, que aprovadas dos mais famosos línguas, foram dadas à impressão e têm servido de guia e mestre d'aquela faculdade aos que depois vieram com proveito e facilidade e d'elas a lição particular em alguns colégios da província... Era destro em quatro línguas, portuguesa, castelhana, latina e brasílica; em todas elas traduzia em romances-pios, com muita graça e delicadeza..."

A casa em que residiam possuía 14 passos de comprimento por 10 de largura. Nessa única sala havia a escola, a enfermaria, o dormitório, o refeitório e a cozinha.

Tinham por camas redes.

Por cobertores o fogo.

As roupas poucas e pobres.

Não possuíam sapatos.

Sabe-se que o principal alimento era farinha de pau feita de raízes - mandioca.

Alguma caça oferecida pelos índios; carne de macaco, de corça, de lagarto. Alimentavam-se também de abóbora, de folhas de mostarda e outras ervas cozidas. Fabricavam vinho de milho cozido em água e mel. Quando a fumaça dentro de casa era espessa e acre, "preferiam o frio de fora do que o fumo de dentro".

Conforme o irmão José escreveu ao superior em Roma, a casa era coberta de palha com esteira de canas como porta. Pois nessa pobreza, nesse desconforto, nesse infortúnio de missionários, que a qualquer outro tiraria a vontade de viver, Anchieta escreveu também aos superiores: "Quase não nos parecemos a nós mesmos pobres!"

Ama o próximo como a ti mesmo! Ele amou os "meninos órfãos nascidos de pai português e mãe brasílica". Ensinou-os a ler e a escrever. Fez para cada discípulo um caderno e muitas madrugadas vieram encontrá-o ainda com a pena na mão, escrevendo. Ensinou a doutrina cristã, ensinou cantigas e quando seus companheiros caminhavam ou cortavam lenha nas matas, louvavam o Salvador em cantos instruídos por Anchieta.

Ele fabricou alpercatas de duros espinhos porque assim podiam caminhar pelos ásperos caminhos.

Ele amou devotadamente seus companheiros de trabalho. Amou os órfãos abandonados; amou "as pobres rosas nascidas entre espinhos", amou todos os ferozes habitantes desta terra, mesmo os índios tamoios.

Ama o próximo como a ti mesmo! Tornou-se prisioneiro dos tamoios, voluntariamente em Iperoig, durante quatro meses e meio, e obteve, pelo amor e pela mansidão, a paz entre os portugueses e o filho do Pindabuçu, o mais feroz de todos os índios, capaz de todas as crueldades.

De Reritiba a Vitória, gravura em relevo de Mastroiani.
Cerca de três mil índios, em cortejo, levaram o corpo de Anchieta à capital capixaba
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Numa véspera de Corpus Christi, Anchieta e padre Manoel da Nóbrega passaram grande perigo. Perseguidos pelos índios chefiados pelo filho de Pindabuçu, correram pela praia, atravessaram o riacho, arrastaram-se por brenhas espinhosas e alcançaram a cabana, pensando ali encontrar um índio amigo. Mas não havia ninguém. Caíram de joelhos esperando a morte. Entre grande alarido e gritos de guerra chegaram os perseguidores. Que encontraram? Dois pobres homens trôpegos e doentes, maltrapilhos, desarmados, sem defesa, de joelhos, orando. Tudo se transformou. O filho de Pindabuçu, quando deparou com os dois missionários rezando, em vez de deixar cair a clava sobre suas cabeças, disse depois: "Entrei, vi os padres e lhes falei, caiu-me o coração e fiquei mudo e fraco. Eu não os matei e já nenhum os há de matar, ainda que todos os que vierem hão de vier com o mesmo propósito e vontade".

O feroz indígena confessou que não teve coragem. Em vez de deixar cair a clava sobre as pobres cabeças, "caiu-me o coração e fiquei mudo e fraco".

Como o tratado de paz não chegava à praia de Iperoig, após esse episódio que foi o mais ameaçador entre tantos outros, estando o padre Nóbrega doente e cansado, decidiu partir.

Foi então que José de Anchieta ficou só, em contínuo risco de vida. Os índios, com o temperamento variável e inconstante dos selvagens, um dia pareciam amigos, em outro inimigos. Foi quando Anchieta desejou e esperou a morte brutal. Nos versos que escreveu na areia, desejou a morte como prêmio ao seu martírio. Narrou no poema a vida de Nossa Senhora para que a Linda Menina o livrasse daquele meio horrível de corrupção moral. O poema em quase 6.000 versos termina tristemente:

"As inspirações do céu
Eu muitas vezes desejei penar
cruelmente expirar em duros ferros.
Mas sofreram merecida repulsa
os meus desejos;
SÓ A HERÓIS
COMPETE TANTA GLÓRIA."

O padre José de Anchieta sentiu-se amargurado, não morreu martirizado. Mas ele morreu todos os dias durante quatro meses e meio. "Cada dia bebíamos tragos de morte", como escreveu ao seu superior. Ele sofreu mil mortes, foi muitas vezes mártir. Esperou a todo o instante, dia e noite, o tacape abrir-lhe o crânio; morreu da morte lenta durante quatro meses e meio.

Seu amor ao próximo foi mais forte que a ferocidade dos selvagens. Foi mais forte que o ódio, que a perseguição, que a crueldade infinita do filho de Pindabuçu.

Os silvícolas espreitavam aquele homem fraco e humilde escrevendo nas areias de Iperoig, procurando compreendê-los, desejando comunicar-lhes as palavras de Cristo, servindo-os. Um dos índios disse um dia: "Ele é mais que homem". Na sua simplicidade, não soube explicar que ele já era santo, mas descobriu que era mais que homem.

Narra o padre Antônio Vieira que os embaixadores perguntaram a São João Batista quem ele era e ele respondeu o que fazia, "porque cada um é o que faz e não é outra coisa. As coisas definem-se pela essência: João Batista definiu-se pelas ações. Porque as ações de cada um são a sua essência. As ações generosas, e não os pais ilustres, são as que fazem os homens".

Que fez José de Anchieta durante sua vida no Brasil, se não um verdadeiro apostolado de amor? Foi catequista, trabalhou pela paz, pregou o Evangelho, foi professor dos índios e mamelucos, ensinou cânticos e quando prisioneiro dos tamoios escreveu o Poema na areia, provando deste modo o poeta sutil, o poeta maravilhoso, o primeiro poeta do Brasil.

Escreveu Autos para os índios representarem e no Auto de Representação na festa de São Lourenço há versos assim:

Oh perdido!
Alli serás consumido
Sin nunca te coinsumir
Alli vida sin vivir
Alli lloro y gran aullido
Alli muerte sin morir
Planto será tu reir,
Tu comer hambre mui fiera
Tu beber, sed sin manera
Tu sueno nunca dormir,
Todo esto ya espera.

Pelos versos acima e muitos outros que escreveu, não só nos Autos para representação, mas na descrição da vida de Nossa Senhora na areia de Iperoig, dá sobejas provas do poeta magnífico que foi. "Porque cada um é o que faz", como escreveu Antônio Vieira, o padre Anchieta definiu-se pelas ações heróicas, dignificantes, extraordinárias, que formaram sua própria essência. Essência do homem bom, e humilde, e justo e Santo.

Certa vez, o índio Cunhambebe disse dele: "Deixá-lo. O pajé fala com o céu. Tupã mandou as avezinhas para saber seus desejos".

Diante da bondade infinita de Anchieta, os índios tornaram-se bons. "Foi mais que homem", definiram os índios.

A maior glória do padre Anchieta foi seu amor ao próximo. Ele amou o próximo mais que a si mesmo. Isso o definiu e o santificou.

Esse foi o "Ínfimo da Companhia de Jesus".

Cidade de Anchieta, antiga aldeia de Reritiba, no Espírito Santo, na década de 1960/69
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

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