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DIA DE ANCHIETA
Biografia

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O texto abaixo é reproduzido da enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, publicada pela editora Abril Cultural, da capital paulista, em maio de 1969, volume I.

Note-se que o ano do nascimento de Anchieta é controverso: a maioria dos autores adota a data de 19 de março de 1534, mas o cronista português Padre Simão de Vasconcelos (1597-1671) afirma que Anchieta nasceu exatamente um ano antes, em 1533, que é a data seguida no texto abaixo reproduzido:

Anchieta - 1533-1597

Um bando de araras corta a mata com suas cores e seus gritos; dois macaquinhos enfurecidos guincham em luta; um grupo de homens volta da pescaria, mas nada consegue perturbar aquele grupo de meninos índios, uns cinqüenta, em volta da batina negra de José de Anchieta. No ar há cheiro de tempestade.

Os garotos estão com os olhos presos a um tablado enfeitado de folhas de bananeira. Lá, três de seus companheiros representam uma cena de conversão: um, de blusa branca, é o Bem; outro, de blusa vermelha, é o Mal; e o terceiro, de blusa azul, puxado ora por um, ora por outro, é o jovem a dar os primeiros passos no caminho da conversão.

Nem os relâmpagos que riscam o céu os intimidam; nem os trovões com seus estrondos os assustam; nem a ameaça de chuva grossa os amedronta. Eles estão todos muito interessados, fazendo teatro, e o espetáculo não pode parar.

O Bem puxa de cá, o Mal puxa de lá. O indiozinho de azul parece que vai ceder às tentações do pecado, mas ainda resiste. E ouve o que lhe diz o garoto de branco, que fala do céu e dos santos, e das maravilhas da virtude. O Bem vence. O jovem, antes indeciso, abraça-o. O menino de vermelho finge raiva e grita.

Chega, então, o clímax: entre palmas e gritos agudos dos assistentes, o Bem derruba o Mal e conquista o jovem para Cristo. O Mal foge para o mato e, previdente, volta sem a blusa vermelha, sua marca. Anchieta, sorridente, abraça os pequenos atores. Seu teatrinho é um sucesso. Os indiozinhos pedem bis, ele promete:

- Amanhã tem mais.

Aquele homem era baixo, moreno, muito magro e meio torto, por causa de um desvio na coluna. Tinha a testa larga, nariz comprido, pouca barba e os olhos meio azulados. Em suas andanças, caminhava sempre descalço, a barra da batina arregaçada. E andou grande parte do Brasil: professor, catequista, poeta, lingüista, teatrólogo, médico, cozinheiro, sapateiro, padre, diretor de colégio, pregador, confessor, provincial, diplomata e fundador de cidades.

Anchieta veio para o Brasil em 1553, na frota que trouxe o segundo Governador Geral, Dom Duarte da Costa. Era, então, apenas noviço da Companhia de Jesus, um moço de dezenove anos, Irmão José de Anchieta. Nos 65 dias de travessia, cozinhava e ensinava catecismo para os marinheiros. Alegre e amável, não tinha, entretanto, nenhuma marca especial que deixasse entrever nem o pioneiro, nem o apóstolo. Mas era ativo, de espírito forte.

Ativo como os pioneiros, de espírito forte como os apóstolos, José de Anchieta é uma das figuras mais constantes nos acontecimentos históricos da segunda metade do século XVI. Presente na fundação de São Paulo, presente na expulsão dos franceses do Rio, presente na pacificação dos índios, ora estava no litoral paulista, ora no do Espírito Santo, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, em toda parte.

Casa em Tenerife onde José de Anchieta nasceu e passou seus primeiros anos
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Um poeta, o "Canário de Coimbra" - José de Anchieta nasceu a 19 de março de 1533, em San Cristóbal de La Laguna, na ilha de Tenerife, arquipélago as Canárias, pertencente à Espanha. Era o terceiro filho do segundo casamento de Dona Mência Dias de Clavijo Llerena, descendente dos conquistadores de Tenerife.

Seu pai, João Lopez de Anchieta, um fidago basco originário do vale da Urrestilha, na Espanha, refugiara-se nas Canárias, em 1522, depois de participar de uma rebelião, pelo que fora condenado à morte. Mas, graças à interferência do Capitão Inácio de Loyola, seu amigo, consegue ser anistiado e vai tentar vida nova em Tenerife.

Na ilha, João Lopez de Anchieta, em uns poucos anos, conseguiu alguma posição e fortuna e se fez respeitado e estimado. E assim conheceu Dona Mência, a viúva com quem se casou.

Entre os cuidados de Dona Mência e de João Lopez, José de Anchieta teve, ao lado dos irmãos, uma infância protegida. Segundo o costume da época, aprende as primeiras letras ainda em casa. E só depois é que possivelmente freqüenta a escola dos dominicanos, bem próxima à sua moradia, onde recebe os primeiros conhecimentos de gramática latina.

Já tem catorze anos, quando, em companhia de Pedro Nuñez, seu irmão mais velho, vai a Portugal para continuar os estudos. Lá, matricula-se no Real Colégio de Artes, onde estuda humanidades e filosofia. E logo se distingue pela facilidade com que faz versos em latim, o que lhe vale mesmo o apelido de "Canário de Coimbra".

Da religiosidade de sua família e do seu misticismo extrai a vocação de sacerdote, que se aviva quando trava conhecimento com a Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada pelo mesmo Inácio de Loyola que salvara seu pai da pena de morte.

Corre o ano de 1550 e o jovem José de Anchieta se candidata ao Colégio da Companhia de Jesus, em Coimbra.

Com dezessete anos de idade, em 1551, José de Anchieta é recebido como noviço. E passa a ajudar de cinco a dez missas todos os dias, dividindo o seu tempo entre a meditação, a oração e o estudo de retórica e filosofia.

O ritmo intenso da vida no colégio lhe abala a saúde. Um ano depois está doente: uma violenta dor nas costas que aumenta com o tempo. É um moço de dezoito anos. Mas a doença o faz velho, a coluna vertebral, quase um S, obriga-o a usar faixas que não conseguem disfarçar o defeito.

Teme, então, ter que deixar tudo: o estudo, a Companhia, a vocação. Mas vai se agüentando, com suas costas encurvadas, e até é capaz de brincar com a própria desgraça:

- A natureza me preparou para carregar fardos.

1553, um alvoroço no colégio: alguns vão ser escolhidos para as missões no Brasil. Anchieta é alegremente surpreendido com a indicação do seu nome. Aceita, e é entre surpreso e alegre que vive os 65 dias da longa viagem. Enquanto cozinha ou descansa das aulas de catecismo, o moço sonha com o Brasil, terra de que ouvia falar desde sua admissão na Companhia de Jesus.

Coimbra, no tempo em que Anchieta lá estudou
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I
(Reprodução de Civitatis Orbis Terrarum, vol. V, de Hoefnegel, Biblioteca Municipal de S.Paulo)

A difícil tarefa dos jesuítas - Os primeiros jesuítas tinham vindo para o Brasil em 1549, e Anchieta aprendera que eram importantes os dias em que chegavam cartas do Brasil, com notícias dos missionários, da conversão de índios, de guerras entre tribos e dos primeiros sucessos da colonização daquele mundo novo.

Do descobrimento, em 1500, até o estabelecimento do primeiro Governo Geral, em 1549, o Brasil viveu meio esquecido e meio abandonado pela corte portuguesa, que vivia embalada pelo sonho de fortuna representado pela exploração da Índia.

Nessa primeira metade do século, só se conhecia estreita faixa do imenso litoral onde foram estabelecidas as primeiras povoações. Entre 1532 e 1549 surgiram pequenos núcleos de população na Bahia, Espírito Santo, São Vicente e Pernambuco, vivendo de uma agricultura de subsistência e de uma incipiente produção de cana-de-açúcar, resultado do trabalho de índios aprisionados.

Isso era tudo, quando, quase na metade do século, Dom João III, acordando do seu sonho com as Índias e alarmado com as ameaças estrangeiras de ocupar o Brasil, passa a se preocupar com a Colônia e decide enviar um governador geral para verificar a administração e organizar a defesa, prestando auxílio às capitanias que antes viviam isoladas.

Tomé de Sousa é nomeado, e com ele vêm os primeiros jesuítas que, nem bem chegados, dedicam-se de corpo e alma ao trabalho de educação dos filhos dos colonos e conversão dos índios.

Esse primeiro grupo de jesuítas traz como chefe o Padre Manuel da Nóbrega e é composto dos padres Leonardo Nunes, João de Aspilcueta Navarro e Antônio Pires, além dos irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome. Segundo carta de Manuel da Nóbrega, os mil expedicionários de Tomé de Sousa não encontraram mais do que uns quarenta ou cinqüenta moradores na Bahia.

O Padre Leonardo Nunes e o Irmão Diogo Jácome são imediatamente enviados às aldeias de Ilhéus e Porto Seguro, em missão de catequese. Depois, o Irmão Vicente Rodrigues vai substituir o Padre Leonardo Nunes, que segue para São Vicente.

Apóstolos para o novo mundo - É o início da catequese. Nem um segundo grupo de jesuítas, que chega de reforço no ano seguinte, permite a execução do programa de Nóbrega, um homem disposto a estender a ação missionária a toda a gente.

O apostolado dos jesuítas não era fácil. Os brancos que viviam na Colônia, reduzida minoria diante dos índios, em muitos lugares se deixaram absorver pelos usos da terra, afastando-se dos costumes cristãos. E, além disso, havia um clima de guerra, com a franca revolta dos índios contra as tentativas de os fazerem escravos.

A dificuldade do trabalho e a amplidão dos projetos forçam o Padre Manuel da Nóbrega a insistir em cartas aos seus superiores de Portugal: quer novos padres e irmãos para levar avante seus propósitos. E insiste com o Provincial Simão Rodrigues, ressaltando que não havia nem muita necessidade de seleção: que mandasse para o Brasil os "fracos de engenho" e os "doentes do corpo".

Doente do corpo, José de Anchieta foi um dos escolhidos. Seu grupo veio chefiado pelo Pare Luís de Grã, ex-reitor do Colégio de Coimbra da Companhia de Jesus.

No caminho de São Vicente, um desastre - A 8 de maio de 1553, na esquadra do segundo Governador Geral, Duarte da Costa, parte essa terceira leva de jesuítas. A viagem se prolonga até 13 de julho, mas se faz calma e sem acidentes. O Irmão José de Anchieta, apesar da doença, parece disposto, mostrando seu entusiasmo. Já na viagem deixava entrever o missionário que seria, adaptando-se a todo trabalho: cozinhava, pregava, planejava. Algumas semanas após a chegada, Manuel da Nóbrega, provincial jesuíta do Brasil, distribui os padres pelos colégios que já começam a se espalhar pela terra. Com o Padre Leonardo Nunes, que os viera esperar, um grupo seguiu para o Sul, em direção a São Vicente. Nele, Anchieta.

Primitivo barracão de taipa que serviu como origem da cidade de São Paulo, em 21/1/1554
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Uma choupana com o nome de São Paulo - Leonardo Nunes e seu grupo seguiram em dois naviozinhos que rumavam para São Vicente. Na altura do Rio Caravelas, uma forte tempestade desgovernou os barcos. Um deles, o que levava os jesuítas, aproximou-se do litoral. Ao tentar se afastar da terra, a tripulação foi surpreendida: o navio roçou o fundo, o leme saltou e um choque mais forte confirmou o encalhe. Muitos dos viajantes ficaram aterrorizados. É o Padre Lourenço Brás, um dos presentes, quem conta:

"Começou a grita no navio e nos pusemos todos a rezar uma ladainha e a chorar nossos pecados. E saímos com as relíquias que ali trazíamos. Quis Nosso Senhor que foi o navio resvalando um pouco, até que deu em quatro braças de água, o qual quantos ali vinham tiveram por milagre. Trataram logo de lançar âncora e arriaram o batel fora, indo observar por onde derivava a corrente. E acharam logo grande profundidade, menos onde nós nos achávamos, e que dali não poderíamos sair senão por uma boca estreita. Ordenaram então que eu recolocasse o leme. E nisto se fechou a noite e ficamos ali para sair pela manhã. E quando já parecia ser uma hora da noite, sobrevém uma fortíssima tormenta de vento contrário."

E continua a descrever a cena: "Sai a esse tempo o piloto fora, que estava debaixo da coberta repousando (e a gente a gritar e a dizer que estávamos mortos), e tomou ele mesmo um machado e cortou os mastros, enquanto outros sustentavam a amarra. E todos gritando. E ao redor de nós rebentavam os marouços..."

Náufrago por dez dias - Só na manhã seguinte os viajantes conseguiram chegar em terra. Nas proximidades, destruído, estava o outro navio. Não tiveram outra alternativa senão ficar, por cerca de dez dias, entre os  índios, alimentando-se de abóboras e de farinha.

Anchieta convivia com os índios pela primeira vez. Encontrou as mangabas, que achou parecidas com as sorvas de Portugal; e as pitangas, que lhe lembraram amoras. Foram dias duros, à espera de que com os restos do navio destruído se reparasse o outro barco. E, com o naviozinho remendado, seguiram para São Vicente, onde chegaram às vésperas do Natal.

A ação dos jesuítas se estendia de São Vicente aos Campos de Piratininga, que o Padre Leonardo Nunes já visitara e onde iniciara a catequese das principais tribos.

Naquele mesmo ano de 1553, por não querer a penetração no território e desejoso de concentrar suas atenções no litoral, Tomé de Sousa mandou reunir no planalto piratiningano os portugueses que já começavam a afundar interior adentro.

Os projetos de Manuel da Nóbrega - Nessa ocasião, como em outras, foi de grande utilidade, tanto para o governo quanto para os jesuítas, a ação de um português chamado João Ramalho, possivelmente um náufrago, que morava no lugar há muitos anos e era casado com a índia Bartira, filha do cacique Tibiriçá. Com a ajuda de Ramalho, fundou-se Santo André da Borda do Campo.

Entre os projetos do Padre Manuel da Nóbrega, estava o de alcançar o Paraguai e catequizar os índios carijós. Para lá chegar, precisava de uma base no planalto e por isso ordenou a construção de um barracão para abrigo dos padres da Companhia. E, nos primeiros dias de 1554, um grupo de religiosos, entre os quais Anchieta, sobe a serra do Mar rumo ao planalto, onde vão se instalar.

É nessa dura viagem a pé que o Irmão José de Anchieta tem o seu primeiro contato com a floresta tropical. A trilha aberta pelos tupis era tortuosa e Anchieta, que tão bem viria a conhecer a rudeza desses caminhos, chegou a se espantar com as densas matas.

Fundação de São Paulo, tela de Oscar Pereira da Silva, acervo do Museu Paulista
Foto-reprodução: Rômulo Fialdini, em História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, 1997, S.Paulo/SP

Nasce uma cidade - O preparo do barracão do planalto, junto a uma aldeia de índios, deu-se no dia 24 de janeiro. É o próprio Anchieta, em carta, quem conta o que aconteceu:

"A 25 de janeiro do Ano do Senhor de 1554 celebramos, em paupérrima e estreitíssima casinha, a primeira missa, no dia da conversão do Apóstolo São Paulo e, por isso, a ele dedicamos nossa casa".

Nascia a cidade de São Paulo. Seus fundadores, sob a inspiração de Manuel da Nóbrega, haviam sido os treze jesuítas chegados de São Vicente. O grupo fundador, chefiado pelo Padre Manuel de Paiva, era formado, além de Anchieta, por Pero Correia, Manuel de Chaves, Gregório Serrão, Afonso Brás, Diogo Jácome, Leonardo do Vale, Gaspar Lourenço, Vicente Rodrigues, Lourenço Brás, João Gonçalves e Antonio Blasquez.

Mal haviam instalado o barracão do colégio, imediatamente passaram ao trabalho de catequese, como nos conta Anchieta:

"Nesta aldeia, 130 de todo sexo foram chamados para o catequismo e 36 para o batismo, os quais são todos os dias instruídos na doutrina, repetindo orações em português e na sua própria língua".

Os primeiros tempos foram difíceis. O barracão inicial servia de dormitório, enfermaria, escola, refeitório, cozinha e até capela. Anchieta mesmo retrata a situação, após alguns meses:

"Este aperto era ajuda contra o frio que na terra é grande, com muitas geadas. As camas são redes, que os índios costuram; os cobertores, o fogo que os aquenta, para o qual os irmãos, acabada a lição da tarde, vão, por lenha, ao mato e a trazem às costas para passar a noite; o vestido é mui pobre, de algodão, sem calças, nem sapatos. Para a mesa usavam algum tampo de folhas de banana em lugar de guardanapos; que bem se escusavam toalhas, onde por vezes falta o comer; o qual não tinham donde lhes viesse, se não dos índios, que lhes dão alguma esmola de farinha e às vezes algum peixinho de rio e caça do mato. Fazem alpercatas de cardos bravos, que lhes servem de sapatos; aprendem a sangradores, barbeiros e todos os mais modos e ofícios que podem ser de préstimo a todos os próximos neste desterro do mundo".

Uns moços bem atrevidos - Em redor do colégio dos padres foi-se formando a nova povoação. Junto do primeiro barracão surgem outros, onde são instaladas oficinas de carpintaria e sapataria, tudo de pau-a-pique e sapé.

Por ser o mais adiantado nos estudos, Anchieta desde logo foi designado para ensinar gramática latina aos seus companheiros e aos meninos mais estudiosos do colégio. E o jovem irmão faz logo uma triagem entre os alunos, separando-os em três turmas, de acordo com o que já sabiam. Inteiramente entregue ao trabalho das suas três classes, lutando contra a falta de livros, Anchieta passava horas inteiras copiando em cadernos o que queria ensinar aos estudantes, dando-lhes por escrito as lições.

Enquanto isso, os índios iam aprendendo catecismo e se alfabetizando. Pero Correia, um dos integrantes do grupo, é quem descreve:

"Temos agora um lugar de índios convertidos, dez léguas pela terra adentro, onde temos igreja e estão sempre dois padres e muitos irmãos. Todos os dias da semana têm doutrina duas vezes na igreja e no mesmo lugar há escolas de meninos. Um irmão tem cuidado de ensiná-los a ler e a escrever, e alguns deles a cantar; e quando algum é preguiçoso e não quer ir à escola, o irmão que tem o encargo deles o manda buscar pelos outros, os quais o trazem preso e o tomam ás costas com muita alegria. Os seus pais e suas mães folgam muito com isso; e são alguns destes moços tão vivos e tão bons e tão atrevidos que quebram as talhas cheias de vinho (cauim) aos seus, para que não bebam. Vai a coisa muito bem principiada".

Com tanto trabalho, as costas doentes, o corpo franzino, Anchieta poderia ter desistido. Mas é ele mesmo quem revela a força do seu ânimo:

"Até agora tenho estado em Piratininga. Ocupo-me em ensinar gramática em três classes diferentes. E, às vezes, estando eu dormindo, me vêm a despertar para fazer-me perguntas; e em tudo isto parece que saro; e assim é, porque, em fazendo conta que não estava enfermo, comecei a estar são; e podeis ver minha disposição pelas cartas que escrevo, as quais parecia impossível escrever em Coimbra".

A nova aldeia faz rápidos progressos - O Colégio de São Paulo ia crescendo, com os jesuítas transformados em construtores e carpinteiros. Índios vinham do sertão atraídos pela novidade; colonos portugueses foram se integrando ao novo núcleo. Logo se fechou o Colégio de São Vicente, cujos professores e alunos foram transferidos para São Paulo, aumentando a população da vila que ia aos poucos progredindo.

Ensinando às crianças índias os princípios da fé cristã, Anchieta e seus companheiros sentiam que esse era o caminho da conversão das tribos. Muito mais curiosas, vivas e interessadas que os adultos, as crianças aprendiam tudo com grande facilidade e, além disso, por vezes ainda eram capazes de levar os ensinamentos aos mais velhos.

As aulas de catecismo, leitura, escrita e canto eram movimentadas. E a vida do colégio, intensa. As construções de pau-a-pique aumentavam, já se formava a primeira rua, havia até uma nova igreja de taipa.

Durante esses anos, Anchieta aprendeu a língua tupi, que usaria para o resto da vida. Mais tarde, seus conhecimentos permitiriam que escrevesse a Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil, que viria a ser usada em todas as missões jesuíticas do Brasil.

O crescimento do Colégio de São Paulo passou a exigir cada vez maiores contatos com o litoral, por onde vinham mercadorias, víveres e notícias da Metrópole. Para facilitar a ligação do planalto com São Vicente, jesuítas, índios e colonos melhoraram o caminho, alargando a antiga trilha dos tupis.

Na época das chuvas, caíam árvores e barreiras, o caminho ficava intransitável e as aulas tinham que ser suspensas para que professores e alunos fossem desobstruir a serra.

A vida no planalto seguia neste ritmo, só alterado devido à presença dos franceses no litoral brasileiro.

Uma ameaça nova: os franceses - Em 1555, a baía da Guanabara se tornara um reduto francês. Lá se instalara, com seus comandados, o almirante Nicolau Durand de Villegagnon, que conseguira uma aliança com os índios da região, os tamoios, inimigos tradicionais dos tupiniquins. As rotas portuguesas pelo litoral ficam sob constante ameaça e, durante cinco anos, nada se fez contra os franceses.

É Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil, quem, em 1560, se dispõe a combater o inimigo. E, ao lado das primeiras tentativas para desalojar o invasor, intima a população da vila de Santo André a se unir ao aldeamento de São Paulo, elevado então à condição de vila. É uma tentativa de reforçar a defesa do planalto diante das ameaças dos tamoios, estimulados pelos franceses.

Não fora difícil aos franceses conquistar os tamoios, homens altivos que há tempos lutavam contra portugueses que pretendiam escravizá-los. E no começo da década de 60 estremecia o planalto diante das ameaças dos tamoios, quando algumas tribos tupiniquins, dos arredores de São Paulo, unem-se a eles.

As coisas ficaram difíceis a ponto de obrigar até a transferência dos jesuítas e seu colégio para São Vicente. São Paulo já era uma região cobiçada, onde se assentavam muitas hortas, pomares, lavouras de mandioca, milho, trigo e alguma cana.

A 3 de julho de 1562, um antigo aluno do colégio chega às carreiras para contar que a vila ia ser atacada. Dado o alarma, João Ramalho, nomeado capitão pelo conselho da vila, assume o comando; ajudado por Tibiriçá, seu sogro e cacique tupiniquim, fica com toda a responsabilidade de defesa da vila e do colégio. Tribos das vizinhanças foram chamadas para ajudar, assim como muitos colonos do litoral. Com reforços de Santos e São Vicente, acorreu outro pioneiro, Brás Cubas. A defesa estava preparada.

O ataque veio na manhã de 10 de julho. Milhares de inimigos, todos pintados e enfeitados de penas, fazendo uma barulheira infernal. As lutas foram terríveis, com mortos e feridos de ambos os lados. Mas os atacantes não conseguiram tomar a vila e se retiraram.

Mesmo assim resolveu-se construir fossos e muros e manter vigilância permanente para evitar ataques de surpresa.

Por todo o fim de 1562, e começo de 1563, os colonos revidam. Há muitas notícias de ataques a tabas e de perseguições aos indígenas. A esta altura, os franceses, que em 1560 haviam sido derrotados pelas dez naus comandadas por Mem de Sá, reassumem suas posições na baía da Guanabara, animados com o regresso do governador-geral à Bahia.

A presença dos franceses, aliada aos saque que colonos faziam às aldeias dos índios, acabou por estimular uma aliança entre as tribos de Bertioga a Cabo Frio, que reunia também tribos do interior e do vale do Paraíba: era a Confederação dos Tamoios. As investidas dos confederados se multiplicam. É quando intervém a experiência do Padre Manuel da Nóbrega, que desde 1561 se encontrava em São Vicente, vindo da Bahia.

Nóbrega, inimigo da escravização do índio, sente desde logo que há razões de justiça ao lado da confederação das tribos. E que só uma missão de paz poderá aplacá-la. Decide, pois, ir em pessoa tentar a paz. Para a missão, convida Anchieta.

Anchieta escreve o poema à Virgem nas areias de Iperoig
(de Cândido Portinari, óleo sobre madeira, 0,56 x 0,46, acervo do Banco Itaú)
Imagem: Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Ed.Nova Cultural Ltda., S.Paulo/SP, 1998, vol. 2

Missão de paz junto aos tamoios - Os dois pacificadores partem de São Vicente em 21 de abril de 1563, no navio de José Adorno, um genovês, que morava na vila. E rumam para Iperoig. Ao se aproximarem de seu destino, Nóbrega e Anchieta são certados pelos tamoios, que se mostram hostis. Mas Anchieta, no mais puro tupi, os saúda com promessas de paz e de amizade.

As palavras de Anchieta convencem os índios. E eles os acompanham até a praia, onde Caoquira, um chefe tamoio, os  hospeda em sua própria casa. O navio regressa a São Vicente, mas o genovês Adorno fica com os dois jesuítas.

Imediatamente se iniciaram as conversações de paz, com Anchieta servindo de intérprete, pois Nóbrega não flava a língua dos índios. Antes de mais nada, Caoquira, como porta-voz de seu povo, enumerou todas as queixas da sua tribo contra os portugueses. Contou e tornou a contar, durante dias e dias, todos os feitos dos bravos guerreiros tamoios. Glorificou os antepassados, enalteceu os companheiros vivos.

Tudo isso, o rosário de queixas e a apologia dos companheiros vivos e mortos, fazia parte dos costumes indígenas. A Nóbrega e Anchieta cabia apenas escutar.

Ao mesmo tempo, Caoquira mandara emissários chamarem todos os chefes confederados para um encontro com os jesuítas. Enquanto ouvem e esperam, os dois jesuítas missionários conseguem sensibilizar os índios que os hospedam. Armam até uma capela. Ali, ajudado por Anchieta e todo paramentado, Nóbrega celebra missa todos os dias. Os índios se encantam com a beleza da cerimônia. Após cada missa, Anchieta explica em tupi a doutrina da Igreja. E com muito barulho anda em volta dos índios, bate o pé, gesticula e faz pausas nos momentos mais dramáticos de suas falas. Cunhambebe e Pindobuçu, dois caciques, já haviam chegado. E com suas tribos inteiras também vinham para a missa.

Logo Anchieta começa a ensinar às crianças os hinos religiosos que compusera em tupi. A cantoria faz a criançada muito feliz e atrai os adultos, que vão ouvir os missionários.

Quando melhor iam as coisas, surge perigosa ameaça na pessoa do cacique Aimberê, que logo ao chegar convoca um conselho de caciques, do qual os missionários não tiveram possibilidade de participar.

No conselho, Aimberê criticou seus aliados por terem acolhido os jesuítas. Acreditava ser impossível um acordo com os colonos, e queria evitar que se caísse naquilo que lhe parecia mais um engano. Matar Nóbrega e Anchieta e partir para o massacre final dos portugueses era a sua solução. No entanto, outros caciques tinham uma posição mais moderada e, afinal, em nome de todos, Aimberê leva a Nóbrega e Anchieta uma proposta: só aceitariam as conversações de paz se os portugueses lhes entregassem os três caciques de São Vicente que, por serem inimigos dos tamoios, deveriam ser sacrificados.

O mais calmamente possível, Anchieta tenta mostrar a inviabilidade da proposta. E a situação se agrava. Aimberê não cede. Nem os jesuítas. É quando Pindobuçu, mais velho e ponderado que Aimberê, intervém, conciliador. Mas nada vai conseguir. Nóbrega procura ganhar tempo: propõe que se consulte as autoridades de São Vicente. O próprio Aimberê se oferece como emissário. E segue viagem, com José Adorno, levando carta em que Nóbrega recomenda duas coisas às autoridades: que o tratamento dado a Aimberê fosse o melhor possível e que a proposta de entregar os índios amigos, naturalmente, não deveria merecer cogitação.

Aimberê e sua comitiva são recebidos em São Vicente com todas as honras. E seguem-se conversações por semanas a fio.

Enquanto Aimberê negociava em São Vicente, Nóbrega e Anchieta continuavam em Iperoig, onde os índios se dividiam em pró e contra a paz. Certo dia, estando os dois na praia, aproximam-se algumas canoas com índios comandados pelo cacique Paranapuçu. Traziam a intenção de matar os religiosos e, com gritos irados, anunciam seu objetivo.

Nóbrega e Anchieta, sem outra defesa, apelam para as pernas. E correm o quanto podem até um riacho próximo. Nóbrega, bem mais velho, não agüenta a carreira. E Anchieta tem que ajudá-lo. No meio do riozinho, um tombo desastrado dá um banho no provincial. Anchieta auxilia-o, carrega-o nas costas e, com os perseguidores nos calcanhares, vão se refugiar na casa de Pindobuçu. Mas o amigo Pindobuçu não está, os índios já vêm chegando com a sua ameaça. Nóbrega e Anchieta se põem de joelhos e começam a rezar.

Chegados à cabana de Pindobuçu, os índios deparam com os dois jesuítas abraçados, rezando em voz alta. E se espantam. Hesitam. Anchieta aproveita-se do momento e toma a iniciativa. Começa a pregar em tupi, aos gritos, até que os assaltantes, entre intimidados e surpresos pela cena que não compreendem, deixam as armas e não querem mais matar.

Como nada se resolvesse em São Vicente nas intermináveis conversações com Aimberê, Nóbrega decide voltar sozinho, deixando Anchieta em Iperoig, pois o retorno de ambos acabaria de vez com as conversações e esperanças de paz.

Iperoig: nas areias nasce um poema - Sem a companhia de Nóbrega, Anchieta passa a enfrentar solitário os problemas da convivência com os índios, cercado de zombarias ao recusar as moças que lhe ofereciam como prova de amizade. A queixa é sua:

"Estou tão mal acompanhado, entre tantas ocasiões de pecado e morte, cercado de bárbaros, nos quais a natureza não conhecia pejo e a honestidade não era conhecida".

Volta e meia surgiam perigos, como este: um cacique o ameaçou de morte, culpando-o ela ausência de caça nas armadilhas; Anchieta mandou, então, que voltasse a examinar as armadilhas e o cacique e seus índios as encontraram carregadas de caça. Um dia, há um perigo mais grave, com a chegada de um mensageiro que traz a notícia do assassínio, em São Vicente, de um dos integrantes da comitiva de Aimberê. Irados, os índios chegam a decidir a morte de Anchieta, quando, providencialmente, surge das matas, mais vivo que nunca, o tal índio sumido. O suposto assassinado havia apenas fugido.

Depois disso, Cunhambebe resolve que o missionário deveria voltar a São Vicente para evitar futuras discórdias. É o próprio cacique quem o conduz de regresso. Em São Vicente são recebidos com grandes festas. Na sua longa missão de sete meses entre os índios, os jesuítas tinham conseguido restaurar a paz, pelo menos com as tribos cujos chefes foram a Iperoig, para onde voltam Cunhambebe e Aimberê.

Foi nas longas semanas de Iperoig, nas intermináveis horas passadas na praia, que Anchieta, com seu bordão, escreveu na areia o poema De Beata Virgine Dei Matre Maria (Da Virgem Santa Maria Mãe de Deus). Logo que se recolheu ao Colégio de São Vicente, Anchieta tratou de passá-lo para o papel: eram, ao todo, 4.172 versos em latim, rabiscados na praia e decorados um a um.

Com o crescimento de São Paulo, surgiram as casas e a antiga igreja matriz (Sé de 1588)
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Guerra do Rio de Janeiro - A paz com os tamoios, porém, não foi durável. O poder de persuasão dos jesuítas não podia atingir senão as tribos mais próximas. A Confederação dos Tamoios voltou a se reagrupar e houve novas escaramuças, até que no ano seguinte, 1564, uma esquadra comandada por Estácio de Sá, sobrinho do Governador Geral Mem de Sá, chega a Santos.

Estácio, dias antes, tentara desembarcar na baía da Guanabara e fora duramente repelido pelos tamoios. Tão numerosos e decididos eram os índios que Estácio não pudera enfrentar e desistira de aportar no Rio. Na capitania de São Vicente desejava obter reforços.

Nóbrega e Anchieta, influentes em toda a região, conseguem recrutar muita gente para reforçar a armada de Estácio. Em 20 de janeiro de 1565, a esquadra de Estácio parte para o Rio, onde chega no começo de março. E com ela, no comando de nove canoas de índios e de mamelucos, lá estavam o Irmão José de Anchieta e o Padre Gonçalo de Oliveira, aos quais se uniram mais índios vindos do Espírito Santo.

Junto ao Pão de Açúcar, ergueram fortificações e fizeram fossos. Gritos, rufar de tambores e cânticos de guerra prenunciam a batalha. O mar em redor se cobre de tamoios que, encorajados pelos franceses, vêm para o ataque. A 6 de março ocorre a primeira batalha: a vitória é dos tamoios e dos franceses. Dias depois, nova luta: dessa vez a vitória é dos portugueses. Anchieta, a esta altura, é enfermeiro de campanha. Em terra e no mar os combates vão se desenrolando por dias, semanas e meses.

Já no início de 1566, o Irmão José de Anchieta parte para Salvador com a missão de levar a Mem de Sá um relato da situação. Para o religioso, entretanto, a viagem encerra um significado ainda maior. Anchieta vai aproveitar a oportunidade para se ordenar sacerdote. Após longos preparativos e depois de um retiro, é ordenado em agosto, por Dom Pedro Leitão, bistpo de todo o Brasil, seu antigo colega de estudos em Coimbra. E é ali, na Bahia, aos trinta anos de idade, que Anchieta reza a sua primeira missa, ele que na sua humildade a si se referia como o "pobre e inútil José".

Três meses depois, o Padre José de Anchieta está incorporado à esquadra preparada por Mem de Sá para auxiliar seu sobrinho Estácio na conquista definitiva do Rio. Todas as forças e recursos estão mobilizados. Seguem, também, com a esquadra que se desloca para o Sul, o Bispo Dom Pedro Leitão e o novo provincial dos jesuítas, Luís da Grã.

Chegam ao Rio em 18 de janeiro de 1567. Estácio e suas tropas recobram o ânimo com a vinda de Mem de Sá. Os combates se acirram até a vitória portuguesa, com os tamoios subjugados e os franceses expulsos. Para garantir a posse da terra, Mem de Sá estimula a implantação de um núcleo de povoamento bem fortificado: é São Sebastião do Rio de Janeiro que vai nascendo.

Nóbrega e Anchieta decidem voltar a São Vicente. Querem transferir o colégio para o Rio. As casas de Piratininga, São Vicente, Santos e Vitória permanecem sob jurisdição administrativa e eclesiástica de Nóbrega. No Rio, para onde vão - Nóbrega como reitor do colégio e Anchieta como auxiliar -, são recebidos em meados de 1567 por Mem de Sá, que ainda lá se encontrava, supervisionando a construção da cidade no Morro do Castelo.

O governador logo indicou gente para auxiliar na construção do colégio. Finalmente instalados, todo o trabalho administrativo ficou com Anchieta, que ainda encontrava tempo para se dedicar à catequese em São Lourenço, a atual Niterói.

A morte do padre Anchieta, em detalhe do quadro Glorificação de Anchieta,
de Lucílio de Albuquerque, pertencente ao acervo do Museu da Cidade, em Niterói
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Um homem que não pára - Em 1570, com a doença e morte do Padre Manuel da Nóbrega, Anchieta assume o cargo de reitor do colégio do Rio, onde permanece até 1573, quando é substituído pelo Padre Lourenço Brás. Nessa ocasião segue para a Bahia, em companhia do Padre Vicente Rodrigues.

Durante a viagem, no Espírito Santo, junto à foz do Rio Doce, um naufrágio os lança na praia. Os dois padres seguem então a pé para Vitória, onde chegam após 15 dias de marcha forçada. Em Vitória, erguem a igreja de São Tiago. Dali, após meses, partem para a Bahia, de onde Anchieta retorna ao Rio e reassume a reitoria do colégio, voltando assim ao seu trabalho predileto: catequese e aulas.

Em 1574, sempre inquieto, vai à capitania de São Vicente e inicia a catequese dos tapuias, ajudado por um índio que no passado salvara da morte. Junto com o Padre Manuel Viegas, Anchieta consegue estabelecer uma reunião de aldeamentos tapuias no lugar onde hoje está Guarulhos, perto de São Paulo, e entrega-se ao trabalho.

Três anos depois, em 1577, outro provincial, Inácio Tolosa, pede a Anchieta que o acompanhe até a Bahia. Tolosa queria nomeá-lo reitor do colégio da Bahia. Mas, uma carta vinda de Roma, assinada pelo padre-geral da Companhia, tem outro e mais importante desígnio: Anchieta é nomeado provincial do Brasil, em substituição ao próprio Inácio Tolosa. É o mais alto cargo da Companhia de Jesus na Colônia.

Com 43 anos de idade, dos quais 24 passados como religioso no Brasil, o Padre José de Anchieta assume o importante cargo. Agora é obrigado a visitar todas as casas jesuíticas do Brasil, missão que cumpre com alegria. Mesmo como provincial, continuou a fazer suas viagens a pé e descalço, despreocupado com a aparência e sem aceitar que o carregassem, como era costume na época.

Foi ao colégio de Olinda, em Pernambuco, de onde volta à Bahia, seguindo mais tarde para o Espírito Santo em visita a Reritiba. Depois, toma o caminho do Rio; a seguir Santos, São Vicente, Itanhaém e São Paulo.

Em São Paulo, entusiasma-se com o que vê: ao redor do primitivo barracão que conhecera há 25 anos, floresce a vila, com o colégio já instalado num grande casarão e muitas casas espalhadas em ruas bem traçadas.

Durante dez anos Anchieta não fez outra coisa senão viajar num tempo de maus e vagarosos navios e de difíceis caminhadas a pé. A doença que o acompanha desde a mocidade se agrava e, em 1584, doente e cansado, escreve ao padre-geral em Roma:

"Como a minha doença começou há muitos anos e agora, com a idade e os trabalhos, apertou mais, existe pouca esperança de saúde; e assim espero que o padre visitador me tirará o cargo da Província, se a morte não tiver cuidado de o fazer".

Só três anos depois, entretanto, é que consegue substituto. Seu sucessor, Marçal de Beliarte, querendo lhe dar maior conforto, pretende transferi-lo para o Rio. Mas Anchieta prefere suas aldeias de índios, prefere continuar seu trabalho humilde de catequese e vai para Reritiba, no Espírito Santo.

No final de 1591 é chamado mais uma vez à Bahia, para opinar sobre questões da Companhia. De lá, volta a Reritiba e, dois anos depois, é nomeado superior do colégio da vila de Vitória e das quatro aldeias de catequese a ele subordinadas. Só em 1595 consegue dispensa de suas tarefas e retorna a Reritiba. Está enfraquecido e doente e, pela primeira vez, permite que o carreguem numa rede. Mas ainda uma vez se recupera, chega a voltar ao cargo de superior de Vitória.

Em 1497, está de novo em Reritiba quando, no mês de junho, seu estado de agrava. No dia 9 pede a extrema-unção. Pesa sobre a aldeia de Reritiba a dor de perder o amigo, que morre nesse mesmo dia, com 63 anos de idade e 44 anos de serviços prestados ao Brasil. A dor de Reritiba espalha-se por toda a colônia. Mais de 3 mil índios acompanharam o enterro de Anchieta pelos 90 quilômetros que separavam Reritiba de Vitória. O longo cortejo crescia a cada passo. Todos choravam a morte de um homem que só teve uma ambição na vida: a cristianização do Brasil.


Em 22 de junho de 1980, o Papa João Paulo II beatificou José de Anchieta,
em mais um passo no longo e complexo ritual de canonização.

Anos após sua morte, os restos mortais de Anchieta foram levados para a igreja de Santiago, em julho de 1609, e dois anos depois parte dos despojos retornou ao País, para a Bahia. Entre os pertences dos jesuítas enviados a Lisboa em 12 de abril de 1760, consta um cofre de jacarandá, contendo as relíquias de Anchieta: quatro ossos de duas canelas e duas túnicas.

Segundo Antônio Henriques Leal (em Apontamentos para a história dos jesuítas no Brasil extraídos dos cronistas da Companhia de Jesus, de 1874), citando o padre Simão de Vasconcelos, depois de sua morte "começou o evangélico Anchieta a obrar muitos milagres em todas as capitanias do Brasil'.

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