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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
Os maestros santistas

Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):

GALERIA DOS MAESTROS SANTISTAS
A música em Santos

A história da música e seus maiores cultores em Santos ainda não está bem devassada. Sabe-se que muitos foram os professores e instrumentalistas no século passado (N.E.: século XIX), conhecem-se-lhes mesmo os nomes, ignorando-se, contudo, os detalhes de suas vidas e seus dados biográficos. As duas biografias que hoje publicamos são, entretanto, os pontos de partida para uma futura pesquisa maior, pois deixam bem entrever a importância da cultura musical em Santos de cem anos a esta parte, com uma grande diferença entre a passada e a atual.

No século dezenove orgulhavam-se os moços de tocar algum instrumento e suas famílias de os verem integrando uma das numerosas bandas ou orquestras locais. Assim, a música tinha então a importância e a intensidade do esporte na hora moderna, em parte pela tendência característica da época, e em parte pela ausência dos derivativos sociais de hoje, as mil e uma preocupações de ordem material que caracterizam o ambiente santista nesta altura do século XX.

A causa dessa diferença no terreno musical é a seguinte: Santos antiga apresentava um movimento intenso de cultura e prática, com seus bons professores próprios e suas organizações musicais caracterizadas pela participação em massa dos melhores elementos sociais; e a Santos moderna apresenta um movimento intenso de cultura, com pouca prática, sem mestres próprios e quase sem organizações musicais, nas quais, além disso, vê-se a ausência quase completa dos elementos sociais, dando lugar, rigorosamente falando, aos profissionais emigrados de outras partes e países.

Os contemporâneos que leiam estas nossas biografias e que, confrontando as suas descrições com a realidade da hora que passa, poderão aferir da procedência ou não das nossas asserções.


Maestro Amaro Pinto da Trindade

Amaro Pinto da Trindade pretenceu a uma geração de artistas, e nasceu nesta cidade, a 19 de abril de 1836, do legítimo consórcio de Luís Arlindo da Trindade, afamado maestro, com d. Maria Luísa da Trindade.

Já seu pai, também nascido em Santos, em 1808, cujos elementos biográficos nos faltam inteiramente, era um grande mestre de violoncelo e de mais alguns instrumentos, diretor de orquestra de muita competência e especialista em arranjos e orquestrações, e, como ele, todos os seus irmãos fizeram nome na divina arte, tornando-se notáveis professores, como Manoel Pedro Nolasco da Trindade, concertista de requinta, clarineta, violino e piano; Jeremias Propheta da Trindade, excelente pistonista, e Henrique Paulo da Trindade, renomado maestro compositor, diretor de bandas e orquestras.

Os Trindade resumem e sintetizam, pode-se dizer, um século de vida artística da cidade de Santos, quando a nossa terra possuiu de fato um grande ambiente musical próprio. Cerca de 1860, a única banda de música existente na cidade era a do "Luís Músico", apelido dado a Luís Arlindo, pai de Amaro Pinto, e, mais tarde, a mesma banda passou a chamar-se "Banda dos Irmãos Trindade", por nela figurar toda a grande família.

Depois da guerra do Paraguai, surgiu a Sociedade Musical União dos Artistas, pertencente à colônia portuguesa e fundada então por Manoel Pedro Nolasco da Trindade, que, ao deixar, tempos depois, a sua direção, passou-a a Antonio Damião Mendes da Silva, o ilustre músico  que fizera toda a guerra do Paraguai, como regente da banda de música do 7º Batalhão de Voluntários Paulistas.

Com o correr do tempo, outras sociedades musicais foram aparecendo, mas todas estimuladas pelos músicos santistas, como a Sociedade Musical XV de Abril, fundada sob a orientação do professor Fernando Bento de Amorim, exímio clarinetista santense; a Sociedade Musical Comércio e Arte, sob a regência do professor João Narciso do Amaral, santista de duas gerações; a afamada Sociedade Musical Luso-Brasileira, fundada sob a direção e regência do professor Ricardo Henrique da Rocha Lima, santista de velha estirpe, pai do futuro marechal Cláudio da Rocha Lima, com elementos do alto comércio e de distintas famílias de Santos, da qual fizeram parte o capitão Affonso Porchat de Assis, em requinta e clarineta; Victorino Proost de Souza em ophcleyde; Luís Antonio da Silva, em clarineta; Antonio Domingues Martins (Totó Martins), em bombardino; Benedicto Calixto de Jesus (mais tarde famoso pintor e conhecido historiador), em bombardon; Virgílio Marcondes, em bombo; Aurélio Prado, em pistão; e Luís Venâncio da Rosa, como porta-estandarte, banda essa que se tornou famosa e venceu alguns concursos musicais fora da cidade; a Sociedade Musical Lyra de Apollo, fundada por Henrique Paulo da Trindade; a banda musical da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, fundada pelo mesmo professor Henrique Paulo da Trindade, que teve depois por sucessores Aurélio Prado, Patrício Soares e o professor Paulino do Sacramento e, finalmente, a Sociedade Musical Colonial Portuguesa, fundada sob a regência do professor João Gonçalves Loyo, santista, substituído, depois, pelo professor Camillo dos Santos, exímio violonista, que com sua competência e esforço, conseguiu a referida banda ganhar o primeiro prêmio em um concurso de bandas, em São Paulo, em 1908.

Depois dessas fundações, todas ocorridas entre 1860 e 1890, e já como últimas manifestações da primitiva quadra musical da cidade, fora do período "trindadino", apenas verificaram-se os aparecimentos da banda de música do Corpo de Bombeiros, a 7 de outubro de 1899, criada pelo professor Aurélio Prado, mestre competente, substituído, mais tarde, por Patrício Soares, conhecido professor baiano; a Sociedade Musical União Portuguesa, organizada pelo professor  Augusto Messias Burgos, e, por fim, a banda de música do Instituto Da. Escolástica Rosa, fundada pelo maestro Patrício Adriano Soares, logo após a fundação daquele instituto, e que teve três fases, sendo regida na segunda fase pelo professor Henrique Escudero, e, na terceira, pelo maestro Aurélio Prado, falecido há dois anos, o último dos abnegados vindos do século anterior.

Tal foi o ambiente em que viveu Amaro Pinto da Trindade, o grande concertista de saxofone, clarineta e violino. Sobre ele, vamos buscar na crônica local os elementos para a sua incompleta biografia.

São de José Ignácio da Glória, o inesquecível abolicionista vicentino, contemporâneo dos Trindade, as seguintes linhas, publicadas em 1908, no Indicador Santista daquele ano:

"Na história da arte musical, foi dado a Amaro Pinto da Trindade o poder de tirar, do seu espírito ideal, uma absoluta independência, não só nas formas das suas obras, como mais ainda, no modo completo de sua execução.

"Era, talvez, o mais venerado dos professores de música de Santos; além da simpatia do seu trato, passava por ter uma grande prática de educação de vozes e por possuir as boas tradições de seu pai, o maestro Luís Arlindo da Trindade.

"Na terminação da guerra do Paraguai, compôs um hino que foi executado e cantado durante as festas realizadas, letra do falecido Antonio Manoel Fernandes.

"No dia 13 de agosto de 1872, Amaro Pinto realizou um concerto no Teatro de Santos (no antigo Largo da Coroação, hoje Praça Mauá), coadjuvado pelos atores dramáticos Domingos e João Eloy e pelos diletantes Theotonio e Venancio Anta. O salão repleto de entusiastas e admiradores; estremeciam os assistentes às melodias do saxofonista, e erguiam-se em ondas de aplausos ao ouvir os mágicos e trêmulos suspiros do canto-grego, os brandos e mimosos volteios da serenata; arrebatados por um raio do nosso céu esplêndido, depositado na cabeça inteligente do artista que traduziu a expressão de sua alma nas melodias do seu saxofone.

"Amaro Pinto, compositor mimoso e agradável, não podia deixar de merecer a coadjuvação de seus admiradores, que o cercavam de aplausos e o coroavam com o entusiasmo que despertou o filho que amontoou glórias para o seu país natal".

No dia 15 de março de 1873, foi para Campinas, e no berço de Carlos Gomes deu um concerto de saxofone e clarineta, coadjuvado por seu velho pai, o maestro Luís Arlindo, em tão nobre empenho, sendo entusiasticamente vitoriado pelo distinto povo daquela cidade.

No dia 2 de março de 1874, Amaro Pinto, coadjuvado pela Banda Musical Lyra Paulistana, deu um concerto na capital de São Paulo, no qual tomaram parte o seu velho pai Luís Arlindo e monsieur Pona. O Correio Paulistano assim se exprimiu:

"No domingo deu-se o espetáculo-concerto em benefício do talentoso artista sr. Amaro Pinto da Trindade, o qual teve uma noite de completo triunfo, vendo seu mérito freneticamente aplaudido pelo ilustrado público dessa capital.

"O canto-grego para clarineta, as variações para saxofone, dentre as quais merecem especial menção as do Carnaval de Nápoles, foram magistralmente executadas pelo notável artista, cujas habilitações musicais o tornam capaz de aparecer desassombrado diante de qualquer platéia, por mais exigente que seja.

"Honrando Santos, sua cidade, que assim como Campinas se orgulha de sido berço dum Antonio Carlos Gomes, pelo que pertence à música, pôde Santos ter o mesmo júbilo de o ter sido de Amaro Pinto da Trindade".

No dia 31 de julho de 1875, deu um benefício no Teatro de Santos, e às ovações com que o povo o acolheu nessa noite, este nosso patrício juntou mais um florão à sua coroa de artista.

"Gostei de vê-lo no vago aspirar das cismas do artista, quando passava o talento derramando concepções suaves como as auras matinais, harmoniosas como o canto do sabiá à tarde, quando a luz despede-se do mundo e as sombras descem às serranias.

"Licínio Torres, Emílio do Lago, Joaquim Macuco, Henrique Paulo, Manoel Nolasco, Jeremias e Patrício, passaram rápidos como a sombra, e o país não registrou seus nomes na galeria da arte imortal do profeta-rei, a relembrar as agonias daqueles talentos que se esfacelaram na obscuridade.

"O destino tem os seus oráculos.

"Abria-se a Amaro Pinto a carreira de empregado público, aceitou-a. Nesses felizes tempos, a carreira única aberta às ambições da mocidade santista era a carreira de empregos públicos.

"Os anos mais brilhantes e que podiam ser os mais fecundos da sua mocidade, passou-os a copiar ofícios, e a fazer contas de multiplicar. Nunca abandonou a música, mas nunca pôde também realizar as suas aspirações.

"Já os anos lhe tinham nevado largamente a fronte, e, contudo, a sua paixão pela arte era cada vez mais intuitiva.

"Às vezes, no ardor do seu trabalho, no fogo da inspiração, sentia uma punhalada sutil varar-lhe o flanco e lembrar-lhe que, à beira da encosta, que se sobe para encontrar a glória, caminha também a morte.

"Enfim, um dia, depois de breve doença, que mal deu tempo aos seus amigos para conhecerem o perigo, Amaro deixou cair da mão inerte a batuta e resvalou na campa". (São Vicente, 1908).

Existem ainda em Santos muitos cidadãos de conceito, e, entre eles, o jornalista Octávio Veiga, que afirmam ter sido realmente admirável a capacidade artística de Amaro Pinto, e extraordiária a sua interpretação ao saxofone, que, ao seu sopro, não parecia o mesmo instrumento desferindo notas preciosas, verdadeiras filigranas de som, que encantavam os ouvintes.

Amaro Pinto da Trindade lecionava vários instrumentos, harmonia e canto, e compunha quase sempre à noite, aproveitando a inspiração que lhe vinha no silêncio do recolhimento, e, as suas composições, muito inspiradas, ficaram quase todas em manuscrito, distribuídas pelas igrejas de Santos e casas de famílias, aparentadas ou simplesmente amigas.

Compôs muitas missas, sempre executadas na matriz de Santos; Ave-Marias, Gloria Patri, Tantum Ergos e outras peças litúrgicas, muito inspiradas e gabadas pelos contemporâneos.

De sua autoria, existem, hoje, impressas, somente seis ou sete valsas, ainda em uso nas famílias antigas, tocadas sempre pelas orquestras que atuam em Santos, e nunca esquecidas pela grande melodia e inspiração que as caracterizam. Na apresentação da Sociedade Pró-Cidade de Santos, a 28 de janeiro de 1937, no Teatro Coliseu, a grande orquestra que tocou no espetáculo comemorativo executou, entre outras peças, a sua grande valsa Últimas rosas, com grande sucesso, merecendo o bis como homenagem ao saudoso artista da cidade.

Últimas rosas, Depois do baile, Antes do baile, Roubando um beijo, Pensativa e Olga são as suas valsas impressas, a que nos referimos, suficientes para conservarem a memória de seu pranteado compositor, que não teve a felicidade de merecer as graças da sorte, a ajuda dos governos que lhe teria permitido um aperfeiçoamento na Europa, para aproveitamento do seu gênio musical.

Amaro Pinto da Trindade faleceu em Santos, sua terra, no dia 29 de maio de 1901, na idade de 65 anos.


Amaro Pinto da Trindade
Foto publicada com a matéria

Maestro Henrique Paulo da Trindade

Nasceu em Santos, a 4 de janeiro de 1842, sendo filho legítimo do maestro Luís Arlindo da Trindade (o Luís Músico) e de de Maria Luísa da Trindade.

A exemplo de seu irmão Amaro, Henrique Paulo da Trindade, apesar de seu grande talento musical, nunca saiu de sua terra, nela realizando todos os seus estudos e todo o seu preparo, ministrados por seu próprio pai, profundo conhecedor de música, harmonia e técnica instrumental.

Compositor inspirado, todas as suas produções se conservaram manuscritas e em poder de igrejas e casas de famílias, onde são mantidas até hoje. O gênero sacro, principalmente, absorvia sua inspiração e, desse gênero, escreveu páginas belíssimas, que até pouco tempo eram constante e diariamente executadas nas igrejas locais, com especialidade na igreja do Coração de Jesus, mas agora, com a resolução de só serem executadas as composições oficiais ou oficializadas pela igreja romana, vão ficando esquecidas nos arquivos, ameaçadas de desaparecimento.

Cerca de 1862, já fazia parte da banda de seu pai, chamada então "a banda do Luís Músico" e, mais tarde, "dos Irmãos Trindade", tocando todos os instrumentos de sopro, principalmente saxofone, pistão, clarineta e flauta. Em 1885 era o regente da Sociedade Musical União dos Artistas, fundada por seu irmão, Manoel Pedro Nolasco da Trindade, importante banda santista. Alguns anos depois, fundou a Sociedade Musical Lyra de Apollo, organizada nas mesmas bases da anterior, tendo sido também, antes disso, o fundador e organizador da banda musical da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio, passando, mais tarde, a sua direção ao professor, maestro Aurélio Prado.

Finalmente, sete anos antes de morrer, no ano de 1900, quando ainda os jesuítas funcionavam na igreja de Santo Antonio do Valongo, Henrique Paulo fundou, lá, o coro do Apostolado do Coração de Jesus, do qual foi diretor até morrer, quando já funcionava então na nova igreja construída três ou quatro anos antes, na Rua da Constituição.

A essa organização dedicou ele as suas últimas atividades, a ela entregando todas as suas numerosas e inspiradas composições sacras. Apesar das músicas estrangeiras que hoje se oficializaram em nossas igrejas, no Coração de Jesus ainda cantam, em nossos dias, os seus últimos Gloria Patri, Padre Nossos e Ave-Marias, sendo famosas as suas Jaculatórias do Bom Jesus de Iguape, pouco usadas mas sempre respeitadas e veneradas pelas igrejas e confrarias, como sendo as melhores peças executadas nos últimos anos.

O maestro Henrique Paulo escreveu também algumas músicas de salão, mas quando o fazia, era para oferecê-las a alguém ou visando seu irmão Amaro. Assim, quando este escreveu a sua famosa valsa Últimas Rosas, Henrique escreveu a sua Primeiras Rosas em resposta, e logo depois Christina, finíssima polca de salão, dedicada à sua parenta, hoje viúva do antigo tabelião e abolicionista Joaquim Fernandes Pacheco.

O mesmo destino de seu irmão caracterizou a sua vida, impedindo-lhe uma grande carreira: a falta de ajuda oficial.

Henrique Paulo da Trindade faleceu em Santos, no dia 13 de julho de 1907, sendo enterrado no cemitério do Paquetá, em jazido da Ordem Terceira do Carmo.


Henrique Paulo da Trindade
Foto publicada com a matéria