Geraldo Ferraz e Pagu, nos traços de Accindino de Andrade, o Dino
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Patrícia, Pagu, Pat...
"... a todos distribuindo seu modo de vida"
(de artigo de Geraldo Ferraz)
Edição: Ana Maria Pereira Sachetto
Fotos: Arquivo
Há vinte anos, morria em Santos uma mulher que, em seus
52 anos de vida, havia experimentado de tudo um pouco, da glória de ser considerada uma revolucionária e pioneira das artes ao sofrimento da tortura
e da prisão. Patrícia Galvão, a Pagu, uma mulher culta, sempre atraída pelos movimentos de vanguarda, sempre divulgando sua opinião - sem se
importar com os escândalos e problemas que isso poderia lhe causar numa época ainda tão conservadora - foi também um temperamento apaixonado, capaz
de se dedicar por inteiro a uma causa ou idéia que considerasse justa.
Sincera, foi a mesma mulher que teve sua saúde abalada quando, seguindo a palavra de
ordem do partido, proletarizou-se, trabalhando em rudes serviços, e anos mais tarde, compreendendo a inflexibilidade dos comunistas, detestou-os com
o mesmo amor que com eles convivera. Temperamento arrebatado, podia discutir acaloradamente e pouco depois ser capaz de extremos gestos de ternura.
Uma personalidade controvertida, sofrida, Pat (como a chamavam os íntimos)
estava sempre em busca do novo. Uma intelectual do Modernismo, nome conhecido em todo o Brasil, que até hoje inspira filmes e livros. Uma mulher
muito bonita em sua juventude, com seus lábios bem marcados e sua cabeleira negra. Um ser muito amado por um companheiro fiel, Geraldo Ferraz, que a
trouxe para Santos, a cidade que ela muito amava, e onde morreu.
Patrícia, uma mulher marcante
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Exatamente quatro dias após o falecimento de Patrícia
Galvão, a 16 de dezembro de 1962, A Tribuna publicava um emocionado artigo intitulado Patrícia Galvão, Militante do Ideal. Nele, era
focalizada a morte de Patrícia e feito um resumo biográfico da vida de Pagu, chamada na crônica de "essa extraordinária Mulher do Povo".
No final, a declaração: "Não a amamos devidamente em nossa pequenez". Uma declaração
sem razão de ser, pois a assinatura, O Redator de Plantão, escondia o nome de alguém que muito a amara e que praticamente a recuperara para a
vida após os amargos anos de prisão: Geraldo Ferraz.
Patrícia Galvão, militante do ideal
Deu-se esta semana uma baixa nas fileiras de um agrupamento de raros combatentes. Ausência desde 12 de
dezembro de 1962, que pede o registro do companheiro humilde, que assina estas linhas. Patrícia Galvão morreu nesse dia de primavera, nessa
quarta-feira, às 16 horas. A rara companheira que perdemos desejava para si a "morte anônima", preconizada por Bachelard. Fez tudo para obtê-la,
perdida numa grande cidade, em país estrangeiro, sozinha num quarto de hotel, longe de tudo e de todos. Refugiara-se na solidão para terminar
sua vida longe da curiosidade, do velório, do registro de um sepultamento.
Mas, como sempre, não conseguiria o que almejava. Morreu aqui em Santos, a Cidade que mais amava, na casa dos
seus, entre a irmã e a mãe que acompanhavam, naquele momento e, felizmente, em poucos minutos, apenas sufocada pelo colapso que a impedia de
respirar, pela última palavra que pedia ainda liberdade, "desabotoa-me esta gola", sem as dores atrozes que afligem as vítimas da enfermidade
que a derrubou.
Há, portanto, que recordar a vida extraordinária dessa Mulher do Povo que ela foi, nunca na crista da crônica
da sociedade, mas anônima na massa das gentes que andam a pé e de bonde, conversando com todos, a todos distribuindo a sua atenção e o seu modo
de vida.
A menina da Vila Mariana que freqüentava a Escola Normal da Praça da República, com sua saia azul e sua blusa
branca, era dessas normalistas que se haviam tornado, para a mocidade de sua geração, um tipo de estudante que todos amavam ver passar
pela Rua Direita, pelo Largo de São Francisco, em São Paulo, a cabeleira solta sobre os ombros, os lábios exageradamente pintados, com um batom
escuro que lhe realçava a palidez... Em 1929, ela entra na história da vanguarda literária de São Paulo, participando do movimento da
Antropofagia, na ala dissidente (Oswald de Andrade, Raul Bopp, Osvaldo Costa, Geraldo Ferraz, Fernando Mendes de Almeida), que era a ala
esquerdista, a ala anti-católica, oposta a Mário de Andrade, Alcântara Machado, Yan de Almeida Prado.
Sua evolução vai rapidamente para os quadros da política militante - a jornalista de 20 anos dirige-se para
Buenos Aires onde encontrará Luiz Carlos Prestes, ainda jejuno de marxismo, alheio ao Partido Comunista, mas líder da Coluna, o Cavaleiro da
Esperança, o chefe revolucionário de quem tanto se esperava... Nessa estada em Buenos Aires, Patrícia Galvão conhece os escritores de vanguarda,
Jorde Luís Borges, Eduardo Mallea, Norah Borges, Victoria Ocampo, a diretora de Sur. Mas a preocupação política a empolgara: não adere a
Prestes com seu programa de "revolução popular". Volta ao Brasil para ingressar no Partido Comunista.
Militava ao mesmo tempo na imprensa e, em 1932, termina o primeiro romance proletário publicado no Brasil,
Parque Industrial, feito de flagrantes de São Paulo, de sua escumalha humana em todas as escalas. Esse romance é publicado em 1933, e por
causa do partido, com um pseudônimo: Mara Lobo, pseudônimo a que a escritora retornara neste jornal, há poucos anos, para assinar seus
comentários de literatura. Parque Industrial é recebido pela crítica como um doloroso documento humano, que se servia de toda a
brutalidade da linguagem para enunciar as desgraças da classe submetida. Sua maior glória é a atenção que lhe deu a crônica de João Ribeiro (Jornal
do Brasil, Rio, 26/11/1933, reproduzida na Edição da Academia Brasileira de Letras, Obras de João Ribeiro - Crítica - OS MODERNOS,
página 337).
Patrícia Galvão sofrera, desde 1931, as conseqüências da refrega social e política em que ingressara: em
agosto de 1931, aqui em Santos, num comício do Partido na Praça da República, é ela, à frente, quem levanta do chão, ensangüentada, a cabeça do
estivador Herculano de Souza, que expira em seu colo. É, nesse momento, a primeira mulher a ser presa no Brasil, na luta revolucionária
ideológica. O casarão da Praça dos Andradas, o cárcere 3 "o pior cárcere do continente", diria um dia o general Miguel Costa, como secretário da
Segurança em São Paulo, acolhe os presos do comício de agosto de 1931, comemorativo da execução de Sacco e Vanzetti.
"Proletarizar-se", era a palavra de ordem do partido e, embora ainda milite na imprensa do Rio (Diário de
Notícias), Patrícia Galvão trabalha nos mais rudes serviços até ficar doente. Segue-se a viagem à volta do mundo, e os jornais Correio da
Manhã, Diário de Notícias, Diário da Noite de São Paulo, recebem suas correspondências dos Estados Unidos, do Japão, da
Mandchúria (única jornalista latino-americana a presenciar a coroação do imperador Pu-li, fato que estabelecia a dominação do Japão sobre aquela
área territorial da China). É na viagem à China que Patrícia Galvão entrevistou Sigmund Freud, em viagem de recreio.
A jornalista viaja pelo Transiberiano, na longa viagem que ia de Dairen a Moscou, em oito dias e oito noites
de ferrovia. De Moscou ela parte para a França e na passagem do trem por Berlim (sua família materna é de ascendência alemã), ela pede aos
esbirros da Gestapo que a vigiavam como suspeita, porque vinha de Moscou, que a deixassem descer do trem durante a espera para, pelo
menos, tomar um chope alemão. E, acompanhada pela Gestapo, ela experimenta o chope numa cervejaria próxima - "não teria degenerado?",
perguntava: "Não parecia ter nada de diferente, ou de melhor", comentaria depois.
A estada em Paris, seu ingresso nas fileiras do Partido Comunista com identificação falsa ("Leonnie", uma
francesa disfarçada atrás do argot, que aprendera a duras penas), sua ligação com Aragon, por um lado, por outro, com os surrealistas de
André Breton, Paul Eluard, Benjamin Péret (na residência da mulher de Péret, a cantora brasileira Elsie Houston, Patrícia Galvão viveu alguns
meses, numa casa da Rua Lepic, que ainda existe), com René Crevel, cujo suicídio lhe deixaria a mais funda impressão, freqüentando a Université
Populaire em que seguiria cursos dos professores Marcel Prénant, Politzer, Paul Nizan, o grupo de "A la lumière du Marxisme", que editava
os livros da Éditions Sociales Internationales.
Na Jeunesse Communiste, ela e um grupo de "não convencidos" protestam contra a proibição do partido de cantar
a Internationale, nas comemorações de 14 de julho (a ordem provinha da Rússia, de Stalin, que queria integrar o partido no Front
Populaire, e o queria nacionalista adotando a Marselhesa. Ela trabalhava então para os estúdios de Billancourt, como
tradutora.
Dá-se então a prisão da militante comunista estrangeira em Paris... O gabinete da Frente Popular de Leon Blum
caíra, Laval assumira o governo. E ela é identificada e o embaixador Souza Dantas lança todo o seu prestígio para tirá-la da Sureté, de
onde as alternativas eram um Conselho de Guerra, ou a deportação por decreto para a fronteira da Itália ou da Alemanha. Souza Dantas, decano da
diplomacia em Paris, consegue que ela seja embarcada para o Brasil. E Patrícia Galvão regressa.
Uma página biográfica que ela escreveu, e que reproduzimos, conta o que foi essa volta. Presa em conseqüência
do movimento de 1935, de então até 1940 sua vida é o cárcere: o Juízo Federal em São Paulo a absolvera; o Tribunal Militar no Rio a condenara -
aos dois anos de prisão, seguem-se mais dois anos e meio que, já na vigência do Estado Novo, o Tribunal Nacional de Segurança lhe cominará.
Em 1940, após sua libertação, desligada do Partido Comunista, Patrícia Galvão fixa-se, primeiro em Santos,
depois em São Paulo, e em 1942 no Rio. Sua pecha de antiga comunista a impede de tornar à imprensa imediatamente. Ela colaborou, então, no O
Jornal do Rio. Com as vitórias aliadas na Segunda Guerra Mundial, ela integra, com Mário Pedrosa, Hilcar Leite, Geraldo Ferraz, Edmundo
Moniz, a redação da Vanguarda Socialista, em seu período combativo mais brilhante.
Nesse mesmo ano de 1945, Patrícia Galvão volta à literatura com a publicação de um romance no Rio, A Famosa
Revista (Americ. Edit.), feito em colaboração com Geraldo Ferraz, e só aceito por um editor: Max Fischer, um francês que durante a Segunda
Guerra Mundial preservara a literatura de seu país ocupado, editando livros em francês no Rio. Antigo diretor das edições Flammarion, Max
Fischer fez também algumas edições brasileiras, de livros de Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e poucos outros. A Famosa Revista
foi reeditada em 1959, precedida de um estudo de Sérgio Milliet pela Editora José Olympio, juntamente com a segunda edição de Doramundo,
de Geraldo Ferraz.
A partir daquele ano ela participa do primeiro quadro de redatores da Agence France Press, em que
trabalhará por 11 anos, no Rio e em São Paulo. Só depois desse período é que a veremos em A Tribuna, onde criou várias seções, mas,
principalmente, deu sua maior participação às coisas do teatro. Freqüentando, em 1952, a Escola de Arte Dramática de São Paulo, embora não se
especializasse em nenhum setor, ela se torna, na palavra de Alfredo Mesquita, na noite de quinta-feira última, "a maior amiga da Escola", e traz
os seus espetáculos a Santos, desde A Descoberta do Novo Mundo, em 1955...
Foi na Escola de Arte Dramática que, num dos exercícios do Curso de Autores, ela apresentou a sua tradução de
A Cantora Careca de Ionesco, com estudo diagramático, numa aula de Décio de Almeida Prado. Era a primeira vez que, traduzido, Ionesco foi
apresentado à consideração dos alunos da EAD - estava presente a essa aula a atriz Cacilda Becker.
A Cidade a acompanhou em sua trajetória pela construção de um teatro em Santos, pela formação de grupos
amadores, pela apresentação do teatro de vanguarda nesta cidade, até a notável realização de Fando e Lis de Arrabal, que Patrícia
traduziu e dirigiu. "Minha maior alegria foi quando, ao assistir a peça no Teatro Bela Vista em São Paulo, Alfredo Mesquita, provocado por mim
sobre o que achava do trabalho da aluna, me declarou que eu já não era mais aluna de teatro..." Entretanto, é como aluna de teatro que
Patrícia tenta, ainda, apesar de doente e esgotada, voltar a freqüentar este ano os cursos da Escola de Arte Dramática. Ao ser nomeada membro da
Comissão Municipal de Cultura de Santos, ela estabelece com a Escola um acordo para todos os meses a EAD vir a Santos. Na Associação dos
Jornalistas Profissionais, Patrícia levanta a idéia da construção, na nova sede, de um pequeno teatro.
Pede demissão da Comissão Municipal de Cultura, estava muito doente, não podia continuar... A comissão
rejeita, unanimemente, a demissão, faz votos que ela volte aos seus trabalhos, restabelecida. Segue-se a sua viagem a Paris em setembro último,
donde regressou em novembro, condenada - a tentativa de uma intervenção cirúrgica efetuada pelo professor Dubosc, na Sala Poirier, no Hospital
Laennec, malograra - restava-lhe esperar a morte.
Na vida tumultuosa que levou, a obsessão por uma idéia, ideologia ou função cultural, encarnou-se nessa figura
de mulher que jamais buscou a publicidade, mas que a teve até pejorativa, até escandalosa, até deprimente - ela considerava seus reveses e suas
derrotas, as bofetadas do destino, as chibatadas da polícia, a prisão e o escândalo em torno de seu nome e de sua atuação, grã-cruzes de
uma luta que iria até defrontar-se com a morte.
É desse ralo agrupamento de Militantes de Ideal que esta semana deu baixa a mulher extraordinária que era
nossa companheira de redação. Não a amamos devidamente em nossa pequenez. Não a acompanhamos em suas atitudes e em suas desvairadas alturas, mas
a sentíamos como um esteio humaníssimo em torno de nossas vidas, com a palavra sempre pronta a encorajar, a imprimir em tudo e em todos a fé e a
esperança.
Este registro deveria ser publicado no dia em que ela morreu, mas o silêncio que acompanhou o seu enterramento
no Cemitério do Saboó nos inspirava a recordar em prece de lábios fechados, "o resto é silêncio", trechos
dessa vida que se findou. E que aqui ficam. |
Patrícia aos dois anos, entre os irmãos Homero e Conceição
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Há seis meses, chegava às livrarias um dos mais
completos estudos sobre Patrícia Galvão, contendo pesquisas, biografia, textos literários, uma boa quantidade de ilustrações e, em especial, uma
análise que, apesar de clara, imparcial e objetiva, deixa transparecer a admiração de quem a escreve pela figura de Pagu. O livro é de
autoria de um dos nomes mais importantes da atualidade da literatura brasileira, Augusto de Campos, e chama-se Pagu: Vida-Obra.
Lançado há tão pouco tempo, já se encontra em sua segunda edição, comprovando não
apenas que Augusto é um dos autores mais respeitados, como também que a figura de Pagu continua despertando o interesse de autores, críticos
e do leitor comum. Aqui, em entrevista especial para A Tribuna, Augusto de Campos fala sobre os motivos que o levaram a escrever o livro e
faz um resumo - como sempre claro e objetivo - da atuação de Patrícia Galvão no Modernismo.
Para Augusto, o protótipo da nova mulher "A Tribuna" - Como
você situaria a importância de Patrícia Galvão na cultura nacional, em especial no Modernismo?
Augusto de Campos - Em primeiro lugar, para bem situar a contribuição de Pagu, é preciso
relembrar que ela não participou da primeira fase do Modernismo. Tinha apenas 11 anos quando ocorreu a Semana de 22. Ela intervém na segunda
fase - a da Antropofagia, em 1929. E, dentro da Antropofagia, na chamada 2ª dentição, ou seja, na ala mais radical desse desdobramento do
Modernismo, a liderada por Oswald de Andrade, Oswaldo Costa e Geraldo Ferraz, que pretendiam fazer a crítica interna do primeiro Modernismo,
afastá-lo das recaídas academizantes, do nacionalismo conservador e da repressão espiritualista.
Sob a inspiração de Freud e de Marx, queria instaurar-se uma nova cultura e até uma nova sociedade,
emblematizada na figura do selvagem, nu, desrecalcado e livre. Dentre modernistas velhos e novos, os antropófagos da 2ª dentição foram
devorando, em seus polêmicos moquéns, todos quantos lhes pareciam falhar ao novo ideário: Menotti e Guilherme (por academicismo); Cassiano
Ricardo e Plínio Salgado (pelo nacionalismo reacionário); Tristão de Ataíde e Mário de Andrade (por carolice), tendo antes, desapropriado
Macunaíma por sua notória vis anthropophagica, etc., etc.
Se dentre os próprios escritores da primeira safra modernista era difícil achar quem satisfizesse ao
radicalismo antropofágico, imagine-se a raridade que seria encontrar uma mulher, inspiradora ou ativista, que assumisse a bandeira de luta do
movimento. Pois a Antropofagia encontrou, e não apenas uma: Tarsila e Pagu. A grande pintora, então casada com Oswald, foi, de fato, a
musa-matriz da nova insurreição, com o seu quadro Abaporu (O Antropófago).
Mas a bela e doce Tarsila, a "caipirinha vestida de Poiret" - como a retratou Oswald - não tinha a braveza e o
ímpeto belicoso que a proposta requeria e que já despontavam em Patrícia, sua discípula e admiradora. Com apenas 19 anos, preparada por Oswald e
Tarsila, a garota Pagu sobe no palco do Municipal para escandalizar, declamando poemas modernistas, e consegue calar a vaia dos
estudantes da Faculdade de Direito. E, ainda sob a influência de Oswald-Tarsila, escreve e ilustra o desabusado Álbum de Pagu. É então
que ela começa a encarnar a mulher revolucionária da Utopia Antropofágica.
Mas a fase heróica da Antropofagia duraria pouco. A página do Diário de São Paulo, em que os
antropófagos montaram o seu arraial - o "órgão da antropofagia brasileira de letras" - foi encerrada, após cinco meses de vida e 16 números, em
1º de agosto de 1929, por pressão dos leitores do jornal. Ao fim de tudo, entre perdas e danos, Pagu desaloja Tarsila da visão e da vida
de Oswald.
Da radicalização cultural da Antropofagia passam eles, após a crise econômica de 29, à radicalização política.
Pagu produziria, então, o seu romance proletário, Parque Industrial (1933), tendo passado pela aventura das intervenções
polêmicas, pré-feministas, e das charges políticas da Mulher do Povo (1931). Depois, a viagem pelo mundo, as lutas de rua em
Paris, a prisão por mais de quatro anos, em 1935, e o difícil retorno, em 1941, salva para a vida por um outro ex-antropófago, Geraldo Ferraz.
Com ele escreveria, a duas mãos, o romance A Famosa Revista (1945) e se empenharia numa infatigável e
estilhaçada atividade cultural de informação e de luta em favor das vanguardas literárias, colaborando em diversos jornais e, por fim, nesta
A Tribuna. Com um dossier tão revolucionário (aqui, drasticamente resumido), eu diria que Pagu era a figura de mulher que
faltava ao ritmo de renovação do nosso Modernismo. Sob muitos aspectos, uma precursora da mulher de hoje, o que talvez explique o seu fascínio e
o seu carisma para as novas gerações.
"A Tribuna" - Ela teve importância, então, por sua obra própria, pessoal, ou se situaria melhor como
musa antropófaga, inspiradora do movimento?
Augusto - Se se pensa em obra, como a estruturação perfeita e acabada de um trabalho artístico ou
literário, Patrícia Galvão não terá deixado obras imperecíveis, mas quase-obras, esboços, fragmentos, projetos de obras. Tirando Oswald, porém,
poucos dentre os modernistas da primeira ou da segunda fase personificam tão completamente a imagem rebelionária desse movimento. Por isso
mesmo, mais do que "musa" ou "inspiradora", ela parece configurar o protótipo da mulher nova que emerge da visão transformadora do Modernismo,
em seu sentido mais autêntico. Mulher de dois "antropófagos", Oswald e Geraldo, até na vida pessoal ela parece ter sido basicamente fiel ao
projeto de renovação em que se engajou desde os 18 anos. Por isso mesmo, ante a dificuldade, aqui, de separar vida e obra, eu preferi definir a
sua participação e sua "presença" por uma palavra composta: VIDA-OBRA.
"A Tribuna" - Por que você se interessa tanto por Patrícia e sua obra, a ponto de pesquisar e publicar
vários trabalhos, e inclusive o recente Pagu: Vida-Obra?
Augusto - Sempre me interessaram os escritores e artistas que estiveram adiante do seu tempo e que por
isso mesmo arrostaram, quase sempre, com a incompreensão. Nesse sentido, participei da redescoberta de importantes autores nossos, que se
encontravam marginalizados, como é o caso do poeta maranhense Joaquim de Sousândrade, "o antropófago do Romantismo", sobre o qual escrevi, com
Haroldo de Campos, o livro ReVisão de Sousândrade (1964), reeditado este ano; é este também o caso do poeta simbolista baiano Pedro
Kilkerry, ao qual dediquei ReVisão de Kilkerry (1970). Pagu: Vida-Obra é, a meu ver, mais uma reVisão necessária.
Meu interesse por Patrícia foi despertado pelo interesse por Oswald de Andrade, de cuja reavaliação Haroldo de
Campos e Décio Pignatari, meus companheiros de luta literária, participaram decisivamente. Mas entrou aí também o acaso. Em 1952 eu publiquei um
poema (O Sol Por Natural), inspirado num outro poema, Natureza Morta, que saíra no Diário de São Paulo em 1948, com a
assinatura de Solange Sohl. Depois da morte de Patrícia, em 1963, o poema chegou às mãos de Geraldo Ferraz, que então revelou ser aquele um
pseudônimo de Patrícia Galvão.
Desde essa época, comecei a juntar os pedaços do quebra-cabeças que era a vida-obra de Patrícia. A dificuldade
de conseguir informações sobre ela retardou o projeto do livro ao longo dos anos, mas as novas e surpreendentes descobertas que foram surgindo,
especialmente a do Álbum de Pagu, acabaram me animando a concluí-lo. Há pouco, remexendo em meus recortes de jornais, deparei com um
artigo de Geraldo Ferraz, publicado em A Tribuna, em 28 de maio de 1963, no qual ele comenta as traduções de Joyce, por mim e por Haroldo
de Campos, no Panorama do Finnegans Wake. No parágrafo final, relembra que "a primeira tentativa de tradução de Joyce foi feita sobre
algumas páginas de Ulysses, em 1949, por Patrícia Galvão". E conclui: "Como andaram perto sempre Patrícia, Augusto e Haroldo de Campos,
tento aqui fazer com que se dêem as mãos, agora em torno de Joyce, rememorado pela tradução do Panorama. Quem sabe a observação de
Geraldo não responde ou completa a resposta à sua pergunta?
"A Tribuna" - O seu livro está alcançando o objetivo de tirar da sombra a figura de Pagu?
Augusto - Espero que sim. Para minha surpresa, o livro, lançado em junho, já está em segunda edição.
Agrada-me pensar que, ao trazer Pagu novamente à tona, eu não tenha caído na mera mitificação. Procuro traçar o percurso acidentado de
uma mulher que não foi apenas personagem de uma aventura, mas uma "escritora de aventura", a experimentar e a pesquisar seriamente. Alguém que,
por anos a fio, se propôs defender e divulgar a mais difícil e a mais contestada das atividades literárias, a dos escritores de vanguarda, com
os quais cerrou fileiras, desde a época em que ela mesma surgiu para a literatura e para arte como "o anúncio luminoso da Antropofagia". |
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