Página principal do jornal no dia seguinte à tragédia
MEMÓRIA
Tragédia da Vila Socó completa 20 anos nesta terça-feira
Número de mortos ainda é controverso. Capela vai homenagear vítimas
Manuel Alves Fernandes
Da Sucursal de Cubatão
Ocorrido na noite de 24 de fevereiro de 1984, por volta das 23h30, um sábado
que antecedeu ao Carnaval, o incêndio da Vila Socó mudou a história de Cubatão: o duto de gasolina que atravessava a favela explodiu. Na madrugada
do domingo, enquanto inocentes foliões se divertiam nos bailes pré-carnavalescos dos clubes da região, 99 pessoas morriam na Vila, segundo registros
oficiais.
Ambientalistas e dirigentes da Sociedade de Melhoramentos da Vila São José promovem na
próxima terça-feira, às 10 horas, no ponto onde o fogo começou, ato simbólico denominado "Cubatão tem memória", em homenagem aos mortos.
A tragédia voltou os olhos do planeta para Cubatão e colocou a nu outro problema: a poluição industrial que,
desde a década de 70, deu à Cidade o apelido de "Vale da Morte".
Impressionado com o incêndio, o então governador Franco Montoro mandou a Cetesb implantar um programa de redução
dos poluentes que custou US$ 1 bilhão às indústrias e tornou Cubatão exemplo de controle ambiental.
Vinte anos depois, políticos e organizações ambientais ainda não estão convencidos sobre quantas pessoas
morreram, de fato, no incêndio que começou no duto enferrujado da Petrobrás, por onde vazaram 700 mil litros de gasolina, transformando o mangue num
lençol onde boiava o líquido inflamável?
Em 25 de fevereiro de 1985, o jornalista José Rodrigues publicou o livro Vila Socó - a tragédia programada,
cujo mote era exatamente essa questão. Em prosa e versos, com ilustrações de Lauro Freire, a obra foi dedicada "às vítimas da Vila Socó, até as não
contadas que desapareceram nas cinzas".
Freire mostra no livro duas realidades, lado a lado: no primeiro quadro, foliões dançando e cantando "Meu coração
amanheceu pegando fogo". No segundo quadro, pessoas em meio ao incêndio nos barracos gritando... "fogo... fogo!"
Não existem mais barracos sobre o mangue da antiga Vila Socó, que mudou até de nome: chama-se oficialmente Vila
São José. O bairro transformou-se num local urbanizado com casas de alvenaria, algumas com dois andares.
Luta |
"Não esqueço a necessidade dos vivos
lutarem muito para obter parcas indenizações
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Dojival Vieira dos Santos
Jornalista
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Os vivos - "Não esqueço os mortos calcinados e a necessidade dos vivos lutarem muito para obter
indenizações parcas, nos meses que se seguiram. E também dos confrontos com a polícia para obrigar a Petrobrás a reconstruir as moradias", assinala
o jornalista Dojival Vieira dos Santos, que conduziu a luta pela reconstrução.
Ele vai criar uma organização não-governamental com o nome de "Memória Ativa" para cobrar a dívida social
decorrente do incêndio. Muito da reconstrução da Vila se deve à luta conduzida pelos então vereadores Dojival, Armando Campinas Reis, Mychajlo
Halajko Júnior, Florivaldo Cajé e Romeu Magalhães.
Na área aterrada, foi trocada a tubulação (numa faixa onde se proibiu construções). E erguidas cerca de 100 casas
e uma escola municipal.
Sobreviventes foram deslocados para a Vila Natal, onde o Governo do Estado, com verba da Petrobrás, construiu
mais 290 casas em área doada no governo do então prefeito José Osvaldo Passarelli. Hoje, apenas uma tosca cruz (feita com o que sobrou da madeira de
barracos queimados) lembra o incêndio.
Duto foi construído em 1951: favela surgiu na década de 70
"Socó era o nome popular de um bonito passarinho que perambulava pelos mangues de Cubatão, sempre à procura de
pequenos peixes, quando, no início dos anos 60, uma parte daquele pântano foi invadida por moradias de pau-a-pique, convencionalmente chamadas de
palafitas". Assim o historiador cubatense Joaquim Miguel Couto descreveu a vila onde, quando garoto, pescava siris e pitus. Tinha 19 anos quando a
favela da Vila Socó começou a crescer na altura do km 53 da Via Anchieta.
Hoje, aos 44 anos, é doutor em Economia pela Unicamp: "A industrialização de Cubatão, com a implantação da maior
refinaria do País à época, seguida das transnacionais petroquímicas e da siderúrgica Cosipa, trouxe para a pequena e pacata Cidade uma enxurrada de
migrantes, principalmente nordestinos e mineiros".
Recrutados pelas empreiteiras, responsáveis pela construção das grandes indústrias, esses operários, em razão da
baixa remuneração, foram ocupando morros e mangues.
"Vila Socó não fugiu disso. Seus casebres de madeira, de moradores pobres e humildes, foram erguidos no mangue
que corria paralelo às duas pistas que ligavam Cubatão a Santos: Avenida Bandeirantes e Via Anchieta".
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Núcleo chegou a ter mil palafitas na década de 80
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Como foi - Antes de serem erguidas as primeiras palafitas, essa área já era cortada pelo Oleoduto
Santos-São Paulo, construído em 1951 pelo Conselho Nacional de Petróleo. "A favela se assentava numa área desabitada, mas que tinha uma bomba
iminente ao seu redor". A crise econômica do início dos anos 80 fez o número de barracos chegar a cerca de 1.000.
"Mas, seu tempo de existência já estava esgotado. Sábado à tarde, dia 24 de fevereiro de 1984, Vila Socó estava
feliz: um vazamento do Oleoduto Santos-São Paulo deixou escapar milhares de litros de gasolina. A população, carente e empobrecida, correu para
recolher e armazenar o líquido precioso, para vender, posteriormente, aos proprietários de veículos. Eram os preparativos para a tragédia".
Por volta das 23h30, a Refinaria de Capuava iniciava o bombeamento de gasolina para o Terminal da Alemoa (em
Santos), através do Oleoduto Santos-São Paulo. "Por falha na comunicação, as válvulas dos tanques OC-5 e OC-7, na Alamoa, estavam fechadas. A
pressão sobre o Oleoduto fez com que o duto A-S, o mesmo que estava vazando em Vila Socó, não suportasse a carga, estourando".
Quantidade de queimados foi pequena perto das mortes
O fogo agiu com tal rapidez (segundo suposições por causa da gasolina que muitos recolheram e armazenaram em
casa) que houve, proporcionalmente ao número de mortos, poucos feridos com queimaduras. Segundo o médico Ricardo Ayube (que estava de plantão no
Pronto Socorro Municipal naquela noite), se for feita uma pesquisa na Santa Casa de Santos, a despeito das proporções do incêndio, se comprovará que
houve um número pequeno de pessoas atendidas na unidade de queimados provenientes de Cubatão.
A tragédia ficou na memória de muitos profissionais da área de saúde. O prefeito Clermont Castor, que também era
médico no plantão do PS, naquela madrugada, socorreu e acompanhou na ambulância feridos levados para a Santa Casa de Santos.
Vinte anos depois, ainda se lembra de uma imagem triste: "o vulto de uma pessoa em chamas, durante a madrugada,
que atravessou a Via Anchieta e mergulhou no mangue provavelmente para apagar o fogo". Bombeiros tiveram dificuldades para localizar o corpo no dia
seguinte. "Na época, o que mais doía era ouvir as histórias das famílias que se salvaram e não puderam retirar os filhos".
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Vila dos Pescadores também foi erguida sobre oleodutos
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Falhamos - Na manhã de domingo, dezenas de corpos carbonizados foram enfileirados na beira da Avenida
Bandeirantes. O presidente da Petrobrás, Shigeaki Ueki, chegou de helicóptero a Cubatão, mas foi rapidamente aconselhado a deixar o local do
incêndio para não ser linchado pela população.
Horas depois, diria na TV Globo: "Tenho a impressão que todos nós falhamos".
Este repórter - acompanhado pelo então vereador Armando Campinas Reis - percorreu o mangue da vila ao amanhecer:
viram corpos carbonizados, crianças em geladeiras, asfixiadas. Não esquecem o cheiro forte de borracha queimada. E os restos de uma mulher morta,
grávida, agarrada aos dois filhos. Formavam uma única massa, como uma escultura trágica de bronze enegrecido.
Cobertos por um lençol, foram colocados numa sala, para poupar do choque o governador Franco Montoro, que veio à
cidade na manhã do dia 25. Não adiantou: Montoro entrou na sala errada, chorou ao ver os corpos e desmaiou.
Vila dos Pescadores - Miguel Couto prossegue: "O laudo técnico admitiu que a ruptura do duto resultou da
corrosão de sua face exterior. Também descartou a hipótese de que o oleoduto pudesse ter sido furado pela própria população para roubar gasolina.
A Petrobrás, por sua vez, assumiu a culpa pelo vazamento, mas retrucou que, quando construiu o Oleoduto
Santos-São Paulo, não havia moradias ao lado das tubulações dentro do mangue.
E conclui: "O trágico dia 25 de fevereiro de 1984 jamais será esquecido pelos meninos da minha geração. Foi o
momento mais traumático da história de Cubatão. No entanto, essa data fúnebre nos faz abrir os olhos para o perigo de uma nova tragédia: a Vila dos
Pescadores, erguida também ao longo do Oleoduto Santos-São Paulo. Uma nova Vila Socó em chamas poderá surgir a qualquer momento naquela área".
Católicos vão erguer capela no local dos antigos barracos
Católicos da Igreja São Francisco de Assis estão construindo uma capela próxima ao antigo cruzeiro, com ajuda de
industriais, comerciantes e autoridades municipais. O grupo é liderado por João Batista da Silva (responsável regional pela paróquia), pelo
mestre-de-obras Jerônimo da Silva Rocha e pelo divulgador Claudionor Ribeiro da Silva. No próximo sábado, haverá um ato religioso nesse ponto, às 19
horas, com missa pela alma dos mortos, rezada pelo padre Antonio Pereira Luz.
A capela ficará pronta em setembro. Situa-se a menos de 500 metros da primitiva capela mantida por irmãs da
Diocese de Santos, na área próxima ao incêndio, eliminada pelo fogo como os outros 470 casebres de madeira (metade da favela).
Morreram, conforme o levantamento oficial da Secretaria de Estado da Segurança Pública, 93 pessoas (embora tenham
sido encontrados 99 corpos). Os cadáveres foram identificados com imensa dificuldade. Uma placa com os nomes dos mortos, colocada no cruzeiro, está
guardada na casa de fiéis da igreja para ser recolocada na capela.
Mais mortos - Dias depois, por razões sanitárias, a área de mangue incendiada foi toda aterrada. Por conta
disso, moradores da época garantem que pelo menos outras 200 pessoas estão enterradas no mangue, principalmente crianças cujos corpos desapareceram
incinerados.
Famílias que tinham parentes no Nordeste do País não puderam vir a Cubatão reclamar os corpos. A maioria dos
nomes na placa é de crianças que morreram asfixiadas em geladeiras onde os pais desesperados as colocaram, na ilusão de lhes salvar a vida.
O vereador Romeu Magalhães guarda uma fita, não editada pela TV Globo, mostrando a tragédia. Destacam-se
bombeiros, chorando, entre eles o então capitão Nilauril Pereira da Silva, impotente diante do fato de não ter havido tempo para retirar as vítimas
com vida.
Uma foto de A Tribuna - um bombeiro carregando, na manhã do rescaldo do incêndio, um corpo carbonizado -
correu o mundo.
Transpetro conclui substituição dos tubos até 15 de maio
Os dutos que passam pelo subsolo da Vila São José levando derivados de petróleo são mantidos pela Petrobrás
Transporte S.A. (Transpetro), empresa do Sistema Petrobrás, criada em 1998, e responsável pelo transporte e armazenamento de petróleo e derivados.
Atualmente, uma empresa contratada pela Transpetro vem substituindo trechos dos dutos que atravessam a Vila, com
o objetivo de reabilitação preventiva dos dutos, de modo a garantir a segurança das instalações, do meio-ambiente e da população. Os dirigentes da
Transpetro não revelaram valores das obras, que terminam em 15 de maio, mas assinalaram que "têm custo elevado".
Também responderam acusações de moradores e líderes comunitários de que "a Petrobrás fez muito pouco pela Vila,
nesses vinte anos". De acordo com a Transpetro, a antiga Vila Socó era, em grande parte, uma favela localizada sobre região de mangue.
"Essa condição de moradia degradante foi totalmente modificada pelas obras de reconstrução executadas pela
Petrobrás no local, que implantaram toda a infra-estrutura necessária para garantir condições de habitação e vida".
Para eles, "a atual situação da Vila São José, que conta com edificações em alvenaria, pavimentação, energia
elétrica e outros melhoramentos, prescinde de novas intervenções da Petrobrás. Mesmo assim, a Transpetro desenvolve, com resultados positivos, um
plano de ações junto à comunidade local e poderes públicos da região". |