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HISTÓRIAS E LENDAS DE BERTIOGA
Do passado ao futuro (1)

A transição - antes apenas prevista, mas já então ocorrendo plenamente - de um local pacato habitado por pescadores caiçaras, para um pólo turístico com todos os seus problemas, foi o tema de uma reportagem em duas partes, iniciada no domingo, 6 de janeiro de 1985, no jornal santista A Tribuna: (como referência de valores, um salário mínimo nesse mês valia Cr$ 16.608,00 e um dólar estadunidense era vendido, no câmbio oficial, por Cr$ 3.244):

Bertioga: o futuro vem aí...

Leda Mondin

O olhar cansado do pescador Aristides, 65 anos de idade, procura descanso no verde do mar. Seus olhos se perdem na imensidão de praia à sua frente e se fixam nas ondas mansas que chegam até as areias brancas do Indaiá.

O barco, o remo, a rede secando, peixes agonizantes dentro de um cesto, o sol a pino transformando a água em espelho. O ambiente e os objetos são muito familiares para aquele pescador, filho de pescador, que menino ainda aprendeu a enfrentar sol/sal/mar em busca de cardumes para garantir o sustento da família. A rotina pouco mudou ao longo dos anos, mas o pequeno mundo ao redor ganhou novas feições, novo ritmo, novo clima. Nova vida.

Os peixes escassearam, muros avançam pelas encostas do Morro do Indaiá, é preciso muito cuidado com os carros que passam velozes, impunemente. A claridade da lua não parece tão intensa, e o que foi feito das estrelas? Vendinhas e botecos desaparecem para dar lugar a hotéis, restaurantes, lanchonetes e suas placas luminosas, tratores abrem novas ruas e moradias se multiplicam. Não respeitaram nem a casa onde o poeta Vicente de Carvalho escreveu tantos e tão inspirados versos: uma rica mansão foi construída, no local onde ficava o refúgio do poeta do mar. E há pessoas muito estranhas entre as milhares que chegam, mochila às costas: sentem-se donas de tudo, abusam, desdenham o caiçara.

"É o fim de um tempo. É o fim do mundo", repetem antigos moradores de Bertioga. Assustados, lamentam a tranqüilidade perdida e lastimam que tradições restem apenas na lembrança.


O canal de águas tranqüilas, as praias despoluídas e o verde 
atraem 200 mil pessoas nos fins de semana
Foto: Carlos Marques/arquivo

A partir da década de 40, as coisas começaram a mudar com maior rapidez em Bertioga. À construção das primeiras casas de veraneio seguiu-se a edificação da vistosa Colônia de Férias do Sesc, em 1948, bem como a melhoria das vias de acesso. A cobertura de asfalto da estrada que corta a Ilha de Santo Amaro, em direção ao ferry-boat, mostrou-se determinante no processo de expansão atual.

Mas as mudanças se tornaram bem mais evidentes, aos olhos assustados e apreensivos da população local, ao simples anúncio da abertura das rodovias Rio-Santos e Mogi-Bertioga. Com elas vieram os grandes grupos econômicos, pipocaram litígios pela posse da terra e aos poucos os posseiros vão sendo expulsos, sem condições de defesa. A terra deixa de pertencer a quem nela trabalha.

Há 20, 25 anos, quem pensava em dividir o solo de Bertioga? Agora se avança sobre áreas públicas e se invadem até mesmo terrenos aos fundos da Igreja Matriz. As famílias antigas lutam como podem para garantir seus domínios. Fica como exemplo a vitória do pessoal de Itaguá: construiu-se uma capela para impor mais respeito ao lugar e espantar os jagunços e suas armas. Apenas uma causa ganha em meio a inúmeras expulsões.

Bertioga significa 38 quilômetros de praias de águas transparentes e muito verde. Não é à toa que passou a ser cobiçada por tanta gente que vive sufocada nas grandes cidades, tentando resistir à poluição e aos paredões de concreto que diminuem a qualidade de vida.

De todo o Litoral Paulista, Bertioga é a região que apresenta maior potencial de valorização para investidores imobiliários. E, mesmo nesses anos de crise, o mercado de imóveis é todo euforia. Apenas para se ter uma idéia, os loteamentos aprovados ou em fase de aprovação totalizarão área equivalente a mais de 70% da zona urbana de Santos. Mais: na Praia de São Lourenço, quebrando uma imensidão verde, avista-se um edifício de 10 pavimentos, que faz parte de um empreendimento que envolve 8 milhões de metros quadrados de uma privilegiada faixa de terra, situada entre a orla da praia e a Rodovia Rio-Santos.

Em 10 anos, a população de Bertioga triplicou e, com base no índice de crescimento, nos espaços disponíveis e nas atrações turísticas, dá para prever que em breve será um local densamente povoado. Tudo isso, evidentemente, com o reforço das estradas: a Rodovia Mogi-Bertioga reduziu o tempo de viagem entre Mogi das Cruzes e o Distrito de três horas para 50 minutos, isso sem contar que o percurso entre Mogi e São Paulo não ultrapassa 20 minutos. Conclusão: 70 minutos é o tempo necessário para se deslocar do maior centro comercial e industrial do País para Bertioga. E vice-versa.

Como se não bastasse, a Rodovia Rio-Santos é uma realidade, e o santista pode atingir o outro lado da sua cidade sem precisar utilizar as inconvenientes balsas do Guarujá e do Canal de Bertioga. Algumas semanas mais de obras e, ainda neste verão, a Rio-Santos será entregue à população.

No ano passado, mesmo sem essa rodovia, Bertioga recebeu até 200 mil turistas nos fins de semana. Agora, fala-se em explosões de visitantes. E explosão populacional. Dentro desse quadro que se apresenta, o mínimo que se pode esperar é que se ofereçam condições dignas de habitação aos ocupantes. Bastam os terríveis exemplos de degradação que se observam na Baixada Santista.

O peixe escasseia, mas Aristides não abandona a rotina do mar
Fotos: Walter Mello

Tradições desaparecem

(Nas conversas do povo, muita saudade)

I

"Sinto saudades de tudo. Da minha criação. Da tainha fresquinha. Quantas vezes, com dinheiro na mão, não se acha peixe para comprar. A gente secava as tainhas e as ovas também. No quintal das casas, só se via os varais cheios de tainhas e ovas secando". (Celinha Pereira de Oliveira).

"Toda a gente do lugar ajudava a tingir as redes de vermelho. Rede branca espanta o peixe. Chegava fim de maio já tinha tainha, não é como agora". (Iolanda Rodrigues).

"Não se pode criar uma galinha no quintal porque roubam. Antigamente, a gente roçava um pedaço de terra, plantava, colhia. Hoje, há muros e cercas para todos os lados. Se alguém roça um chão qualquer o dono é capaz de bater na pessoa, brigar com ela, armar confusão". (Benedita Rodrigues).

"A gente vivia melhor, mais sossegado, mais tranqüilo. A gente deixava a canoa cheia de peixe, à noite, e no outro dia encontrava tudo direitinho. Tinha muita concha. Desapareceu. Tinha marisco, não tem mais. A tainha, que dava demais, acabando. Roncador, há oito anos não vejo. A gente via os cardumes, nas águas claras, e escolhia qual queria cercar. Para pegar 500 tainhas, ninguém molhava a rede" (Aristides dos Santos).

"Tudo modificou da noite para o dia. O pessoal era mais unido. Eu vinha pela beirinha do mar, de tamanco, e aí saía fogo do pé. Eu gostava. Era o reflexo da lua que dava idéia de fogo" (Celina Pereira de Oliveira).

II

A Bertioga do início do século (N.E.: século XX) não passava de um núcleo de pescadores. Mesmo na Vila, o cenário permaneceu o mesmo por longos anos: meia dúzia de casas e vendinhas defronte do porto da barca, pequenos trapiches de madeira, embarcações acompanhando o movimento das ondas. Não se conhecia o sentido da palavra progresso. Tampouco se pensava num tipo de vida diferente, conforme comprovam os antigos moradores, que não escondem a saudade dos velhos tempos.

"A gente levantava da cama e já via os peixes brilhando, cruzando as águas. Dava até para escolher o cardume que se queria cercar. Não se pescava tainha com menos de um quilo. O pescado pesava em média quatro ou cinco quilos", conta o pescador Aristides dos Santos, 65 anos de idade, filho de um pescador que morreu aos 98 anos de idade, sem nunca abandonar o barco, o remo e a rede.

Aristides vai pelo mesmo caminho: " trabalhando de teimoso, porque tive um princípio de derrame e não fiquei muito bom. Mas o problema é que o dia em que não trabalho fico mais doente ainda. É bonito ver os peixes, nada me desanima".

Motivos para desistir da pesca nunca faltaram. No passado, quando os peixes eram tantos a ponto de morrerem esmagados uns nos outros, dentro do cerco, o pescado não tinha valor. Hoje em dia, que se consegue melhores preços de venda, acabou-se a fartura. Lei da oferta e da procura, diria alguém, mas essas explicações não fazem muito sentido para os pescadores, que repetem, resignados: "Pescador não arranja nada e morre de pé inchado".

"Acho que a falta de peixe tem a ver com essas barragens que se constróem por aí", comenta Aristides, completando o raciocínio: "Com as barragens, o peixe quer sair e não pode. Antigamente, corria a costa inteirinha. Mês de agosto, voltava. Era outra grande pescaria que se fazia".

III

Encostado na canoa, olhos perdidos num ponto qualquer, Aristides sorri de satisfação ao recordar o inverno de 1958, quando num único lance os pescadores arrastaram até as areias nada menos de dez mil tainhas.

Foi uma festa como nunca Bertioga tivera. Nem os pescadores acreditavam no que viam. Mas, como era véspera de São Pedro, atribuiu-se o milagre ao santo.

"Começamos a puxar a rede às 4 da madrugada. Mulheres, homens e crianças. Todos se uniram para ajudar. Formou-se um monte de tainhas, tão alto que mal se enxergava a parte de cima. Os caminhões partiam lotados, derrubando peixe pelo chão. Eram 10 horas do dia seguinte quando conseguimos despachar todo o pescado", conta entusiasmado Aristides, cujos olhos ganham um brilho especial ao recordar o episódio.

Em compensação, a tristeza transparece quando relembra um outro acontecimento: "Depois que deu essa maré com óleo, a tainha acabou de vez. Era uma judiação ver os peixes completamente pretos, cobertos de petróleo". O velho pescador refere-se ao maior desastre ecológico já ocorrido no litoral brasileiro: quase três milhões de litros de petróleo bruto vazaram de um oleoduto da Petrobrás e se espalharam pelo Canal de Bertioga e pelas praias. A tragédia aconteceu em outubro de 1983 e até hoje os responsáveis permanecem impunes.

IV

Baiacu era peixe que pescador nenhum gostava de ver na rede, principalmente porque ele estraçalha as malhas. Hoje em dia, como mais um sinal da nova realidade, retiram-se filés de baiacus. Nem peixes pequenos, dos que se costumavam dar aos gatos, deixam de ser comercializados.

"Que diferença: no Dia de São Pedro, meu pai fazia festa na praia e dava tainha assada de graça para o pessoal. Não queria saber de cobrar. Os bailes varavam a noite. E quando tinha pescaria boa, o pessoal armava barraquinha, fritava peixe e deixava as horas correrem", continua o pescador Aristides, que até conserva um búzio daqueles que se usavam para alertar a vizinhança, que minutos depois aparecia para ajudar a puxar as redes.

Nem as mulheres escapavam dessa rotina, sem contar outra atribuição, paralela: cortar lenha e montar as fogueiras para se cozinhar uma madeira especial, avermelhada, e obter tinta para colorir as redes. As brancas afugentavam o pescado.

"Nos meses de inverno, de pesca da tainha, ninguém tinha medo de ir ao mato cortar lenha. Então, precisava ter reserva. Os quintais ficavam cheios de pilhas de madeira", ressalta Iolanda Rodrigues, que diz mais: "Também era obrigação das mulheres estender a rede na praia para secar, pela manhã. À tarde, quando soava o búzio, lá iam as mulheres de novo recolher a rede".

Apesar dessas tarefas compulsórias, que se somavam aos afazeres de casa, elas não reclamavam e até ajudavam na própria pescaria, pois com a venda do produto conseguiam dinheiro para comprar roupa nova e se mostrarem o mais elegante possível na festa de Bom Jesus de Iguape, em agosto. Apenas um detalhe, conforme cita Iolanda Rodrigues: "Após as pescarias, formava-se um círculo e  fazia-se a distribuição de peixe entre quem ajudou. Só que, se os homens ganhavam quatro peixes, as mulheres, apenas dois. A gente entendia, pois não entrava no mar, com água pelo pescoço, para levantar a rede".

V

"Tudo modificou do dia para a noite", constata Celina Pereira de Oliveira, que na adolescência aprendeu a fazer a ladainha em latim e até hoje permanece como uma das incentivadoras da festa de Bom Jesus de Iguape.

"Na verdade, houve um tempo em que a festa acabou. Mas, um dia, me reuni com a Iolanda e outras mulheres e decidimos reviver a comemoração. Enquanto Deus me der saúde e eu tiver voz para cantar e rezar, vou continuar", destaca, sem saber se os filhos e netos terão a mesma disposição.

Em junho, um grupo de violeiros sai em procissão para homenagear Santo Antônio. No mês seguinte, um compra flores, outro velas, um terceiro fez licor: são os preparativos para saudar o Bom Jesus. Entra dezembro e os cantadores percorrem as casas, não deixando passar esquecida a Folia de Reis.

Algumas tradições resistem. Mas Bertioga cresce, vive um processo de mudanças crescentes. Os turistas chegam e o atendimento a eles torna-se prioritário. E sobre os filhos do lugar recai o ônus do pseudoprogresso.

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