O diário de Kaycee Nicole
Mário Persona (*)
Colaborador
Prepare
o seu lenço. Isto irá mexer com seus sentimentos. Trata-se
da história de Kaycee Nicole. Numa espécie de versão
high-tech
de Anne Frank, centenas de pessoas puderam acompanhar, pela Internet, o
diário da jovem em sua luta contra a leucemia.
Tudo começou com uma página
na Web. Até um rapaz de Hong Kong, sensibilizado por ser um órfão
do câncer, se oferecer para criar e hospedar o weblog "Living
Colours". Um weblog, ou apenas blog, é a página
criada por um blogger, sistema
para criar sites pessoais, excelente para diários e publicações
espontâneas.
Para o mundo todo, Kaycee contava
o seu drama. E do mundo todo recebia mensagens solidárias. Através
de seu weblog uma comunidade de amigos virtuais acompanhava até
os detalhes de seu tratamento. Mas quando a jovem parecia estar vencendo
a luta contra a doença, apareceu no "Living Colours", uma mensagem
escrita por Debbie, sua mãe:
"Querida Kaycee: 'Living Colours'
irá iluminar nossos dias pelo resto de nossas vidas. Obrigada pelo
amor, pela alegria, pelo riso e pelas lágrimas. Iremos amar você sempre
e eternamente." A nota terminava avisando do falecimento de Kaycee Nicole
no dia 14 de Maio de 2001, aos dezenove anos de idade.
Na Alemanha - A Internet tem
permitido movimentos de solidariedade como o que cercou Kaycee Nicole de
carinho. Ou o que eu próprio testemunhei em 1998, quando publiquei,
num site pessoal em inglês, a história de um acidente de trem
na Alemanha. Três dias depois, recebi um e-mail de um cadete de West
Point, que dizia:
"Sou amigo de ..., a única
americana envolvida no acidente de trem. Ela foi levada a um hospital perto
de Hanover. Talvez você saiba quais os hospitais existentes naquela
área. Ela sofreu uma hemorragia grave e quebrou o pescoço,
e está em estado grave. Já tentei descobrir onde está.
Ficarei grato por qualquer ajuda que puder dar."
Peguei um mapa da Alemanha e comecei
a procurar na Internet por hospitais nas cidades próximas ao local
do acidente. Enviei uns trinta e-mails para hospitais e clínicas
pedindo ajuda para localizar a americana.
Ainda tenho as mais de quinze respostas
que recebi. Médicos e funcionários dos hospitais se mobilizaram
até descobrir o paradeiro da americana. Um deles conseguiu ligar
para ela e outro foi visitá-la no hospital. Passei o número
do telefone para o rapaz nos Estados Unidos, que falou com sua amiga e
foi tranqüilizado. Ela não ficaria paralítica.
Para o bem e o mal - O poder
de mobilização que a Internet permite é fantástico.
Chega a ser assustador. Porque nem sempre podemos ter certeza da existência
das pessoas, empresas ou eventos virtualizados. Ainda seremos enganados
por uma versão Web de "Guerra dos Mundos", a ficção
que Orson Wells levou ao ar em seu programa de rádio em 1938. Dramatizada
como uma invasão real de marcianos, deixou em pânico mais
de um milhão de ouvintes.
Um efeito parecido aconteceu com
você ao ler a história de Kaycee Nicole. Pode enxugar as lágrimas
porque Kaycee nunca existiu. Era apenas uma amiga imaginária, criada
pela filha de Debbie em um site no Geocities. A mãe, uma poetisa
sem público, gostou da idéia e acabou inventando a história
da leucemia. Usando fotos de uma vizinha, Debbie deu um rosto a Kaycee
e iludiu muita gente.
Com sua farsa, Debbie garantiu um
público cativo para seu weblog de poesias e devaneios. A
lista de inocentes úteis inclui até o New York Times,
que chegou a publicar a opinião de Kaycee em uma matéria
sobre estudantes e o uso da Internet. Mas após Debbie "matar" Kaycee
de leucemia, a própria comunidade virtual acabou descobrindo a
mentira. Que daria uma boa manchete para a imprensa marrom. Algo do
tipo, "Mãe mata jovem concebida pela filha".
(*) Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet, editor da Widebiz Week e moderador da lista de debates
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